O Acontecimento
Título Original
L'événement
Realizado por
Sinopse
No ano 2000, Annie Ernaux escreveu um livro sobre o aborto que fez no início da década de 1960, quando este ainda era ilegal em França e quem o praticava corria o risco de ir presa. Na altura, era uma jovem estudante promissora e com oportunidades no horizonte, cuja gravidez veio pôr em causa todo o presente e o futuro. Agora, a história de Ernaux chega ao cinema pela mão de Audrey Diwan, argumentista tornada realizadora, com Anamaria Vartolomei no papel principal. PÚBLICO
Críticas Ípsilon
A escolha de Anne
O Leão de Ouro de Veneza 2021 é um filme discretamente intenso sobre a condição feminina, história pessoal mais do que libelo activista, com uma superlativa interpretação de Anamaria Vartolomei.
Ler maisCríticas dos leitores
O acontecimento
Fernando Oliveira
França, 1963. Anne é uma estudante brilhante, sonha ser escritora. É também uma jovem mulher de ideias definidas, que não tem medo de assumir os desejos que o seu corpo pede, e que não tem vergonha disso numa época em que esses comportamentos eram socialmente condenados. E depois descobre que está grávida, abate-se sobre ela a certeza que aquela criança se nascer nega-lhe o futuro sonhado, decide abortar. Numa época em que em França o aborto é crime. Baseado num romance autobiográfico de Annie Ernaux, é uma história de solidão de uma jovem mulher para quem esta escolha é uma certeza, numa procura que sabe passar por cima da hostilidade, da vergonha, da dor física e emocional; num movimento para a frente, sem nunca hesitar. É um narrativa tão intensamente imersa na intimidade dessa mulher, nos seus desejos, nos seus medos e angústias, mas também na experiência da prenhez e nos processos do aborto que nos deixa profundamente intimidados, até porque Audrey Diwan aprisiona a personagem num ecrã quadrado, claustrofóbico, que nos obriga a olhar para Anne de uma maneira que o tema deixa de ser o aborto para ser ela. E temos Anamaria Vartolomei, a actriz que interpreta Anne que, como escreveu alguém, parece que se abandonou à sua personagem, parece que se expõe completamente ao nosso olhar. Há um balancear quase sublime entre a doçura do seu olhar e a firmeza com que segue em frente na sua escolha. É uma interpretação absolutamente extraordinária. O filme sabe confrontar a dúvida entre ser uma narrativa absolutamente política sobre a condição feminina e o direito de as mulheres decidirem sobre o seu corpo, ou apenas sobre uma mulher que luta pela sua felicidade, pela sua liberdade. Ou, se calhar, estas duas coisas são o mesmo. Um filme perturbante. (em "oceuoinfernoeodesejo.blogspot.com")
Qual acontecimento?
Pedro Brás Marques
Ana é estudante e a data dos exames de acesso à Universidade aproxima-se. Aluna brilhante, tudo se conjuga para que a barreira seja ultrapassada, até ao momento em que descobre que esta grávida. Focada no seu propósito universitário, tenta abortar. Procura ajuda, mas ninguém lhe dá a mão. Está sozinha, mas não desiste...
Há pouco mais dum ano estreava “Never Rarely Sometimes Always”, o filme de Eliza Hittman que aborda exactamente a mesma temática e com enfoque semelhante: a dor, a angústia e principalmente a solidão duma mulher que carrega um filho que não quer dar à luz. Se, neste, passado na actualidade, o procedimento era perfeitamente legal e realizado em circunstâncias próprias e adequadas, sobrando a angústia da personagem, em “L’Evenement/O Acontecimento”, nada disso se passa. Estamos em França, nos anos 60 e a prática de aborto é crime, quer para quem o pratica, quer para a própria gestante. Daí a enorme dificuldade de Anne em conseguir resolver o seu problema. Os médicos não querem ouvir falar nisso, as poucas amigas a quem confessa o drama igualmente se afastam e à família nada disse. Entretanto, como é natural, o seu estado de espírito altera-se, as notas baixam e a confiança afunda-se.
Audrey Diwan conta-nos a história de Anne de forma brutalmente crua. A realizadora não esconde quase nada, desde os procedimentos artesanais até ao sangue e ao sofrimento físico, tudo é mostrado ao espectador em grandes planos, para que se perceba a violência da tempestade que obnubila a protagonista e que só a deixa centrada numa coisa: conseguir o aborto. Por vezes, Diwan parece querer mostrar que Anne vai mais depressa do que o próprio tempo, filmando-a de costas, sobre os ombros, como se a câmara não a conseguisse acompanhar, restando-lhe ser espectadora passiva da protagonista… Mas, a maior parte do tempo, a face e os belos olhos da franco-romena Anamaria Vartolomei enchem o ecrã, qual portal para a alma, como refere o chavão, numa magnífica e memorável interpretação.
E convém, também, sublinhar a inteligência do argumento, que não se limita a “documentar” quer o que era o tabu em França naquela época como o efeito de alguém que quer rejeitar um nascituro e não o pode fazer, mesmo sendo uma gravidez ainda precoce como a dela. É que o argumento levanta uma questão ética, ao problematizar a verdadeira intenção de Anne. O tal “acontecimento” a que o título se refere, afinal, é o quê? É a gravidez/aborto que a impede de ir às provas de acesso, ou é o próprio exame de entrada que está em perigo por causa da gestação? A duplicidade do título, que “engana” o espectador, eleva o filme a um patamar bem maior do que aquele em que estaria se se resumisse à mera questão moral da interrupção da gravidez - como bem se alcança na sequência final.
Desta forma, Diwan leva-nos mais longe: por um lado, temos a questão da extensão da liberdade sobre o destino a dar a uma gravidez; por outro, convida-nos a um mergulho na motivação que preside à decisão. No fundo, convida o espectador a pensar: abortar é um acto de liberdade ou de egoísmo?
4 estrelas
José Miguel Costa
Estamos na França pré-Maio de 68 (mais propriamente em 1963), na qual o grito de ipiranga libertário ainda não se fez ouvir, pelo que o aborto continua a ser um acto ilegal que implica pena de prisão para as galdérias que ousem mandar no seu corpo e praticar tal acto pecaminoso.
No entanto, não será tal condicionante que demoverá a jovem Anne (subtil e intensamente encarnada pela magistral Anamaria Vartomel - fiquemos de olho nela!), estudante pré-universitária brilhante e controversa, pertencente à classe operária, que fará tudo o que estiver ao seu alcance, mesmo colocando a vida em risco, para livrar-se de algo que alienará por completo o seu futuro (e que no imediato implicará a cessação irreversível da sua condição de estudante).
"O Acontecimento" (galardoado com o Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza) não é propriamente um filme militante sobre o aborto (embora também o seja, mesmo que indirectamente), uma vez que a realizadora Audrey Diwan foca-se não tanto no evento em si, mas sobre as implicações que uma gravidez indesejada poderá ter nas vivências e perspectivas de uma jovem (neste caso "bem resolvida e dona do seu nariz"), que provavelmente ficará "hipotecada" ad eternum, devido à aniquilante moral vigente na sociedade.
De igual modo, não opta por um registo sensacionalista, o que não impede que, com mestria, vá intensificando gradualmente os níveis de ansiedade nos espectadores, à medida que a saga solitária da forte/convicta Anne se vai desenrolando num percurso carregado de obstáculos. E tal intensidade é obtida graças ao seu eximio modo de filmar, que "usa e abusa" dos grandes planos (para impedir que percamos qualquer movimento, por minimo que seja, do expressivo rosto da protagonista) e da câmara ao ombro.
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