O Discurso Antiglobalização de Matrix
Ricardo Pereira
A ficção cientifica trabalha com uma forma de simbologia semelhante à do mito. De facto, ela em geral promove uma inversão temporal da lógica que os mitos utilizam, pelo menos da mais tradicional. Em vez de rebater a lógica do presente num passado ancestral, de origem (como um conto de fadas ou num livro bíblico como Génesis, por exemplo), ela costuma rebater esse presente no futuro. Salvo em casos metalinguísticos mais extremos – como num Alphaville, de Godard – o futuro se torna sempre um espelhamento simbólico de uma problemática estabelecida no presente. A dimensão profética da ficção científica é geralmente na verdade um véu que oculta a dimensão historiográfica ou de crítica/denúncia. A série “Matrix” se mostrou particularmente atraente ao surgir, no final dos anos noventa, por que ela trabalha duplamente com esse espelhamento. O retrato traçado pela saga dos hackers que querem libertar o homem das máquinas que lhe impuseram, além da escravidão, um mundo ilusório no qual acreditam viver normalmente, é, num primeiro olhar, sem dúvida profética – no sentido em que coloca no horizonte dos eventos futuros uma problemática pertinente para um mundo em que a alta tecnologia se tornou um dado quotidiano e a interacção homem-máquina uma problemática para o cidadão comum, ainda que certamente não na proporção extrema proposta pelo filme. Mas é a dimensão de metaforização do próprio presente de “Matrix” (sempre é) a mais importante. Isso porque ela consegue assumir ao mesmo tempo a forma de uma metáfora crítica historiográfica e política e mitopoiese ontológica. A segunda é a dimensão de “Alegoria da Caverna” que o texto tem. Claramente desenhado para ser um mito, cheio de personagens com nomes simbólicos (Morpheus, Neo, Trinity), cheio de citações a mitologias grega e judaico-cristã, o primeiro filme parece ser uma versão pós-moderna da metáfora platónica de que o homem é enganado pelos sentidos, a realidade está em outro plano e só o conhecimento da verdade pode libertá-lo. Neo representa uma espécie de guerreiro filosófico, que traz a verdade para o homem. E disso mesmo decorre a segunda dimensão: a actualidade estabeleceu um tipo de relação entre homem e técnica e com a imagem que tudo se tornou simulação. E é nesse ponto que o filme estabeleceu seu elo mais forte com o presente. Os guerreiros que libertam o homem em muito se assemelham ao exército antiglobalização de nossos dias, aqueles militantes que utilizam o hackerismo e alta tecnologia criticada na globalização justamente para fazer frente à mundialização da cultura. Pois bem, “Matrix Reloaded” é justamente a ampliação dessa ligação com o presente e a redução da dimensão ontológica. A opressão da máquina que oprime o homem e que impõe outra realidade é a opressão de uma cultura sobre o homem, como a militância antiglobalização quer demonstrar que o capital produz na actualidade. É curioso, por exemplo, que poucos dos lutadores sejam brancos de beleza greco-romana. Eles são um exército de excluídos, de minorias. São negros, orientais, latinos. O grande libertador, Morpheus, é negro. Libertador e crente religioso, praticamente um fundamentalista, aliás. Entretanto, a mesma história reservou para brancos, Neo e Trinity, papéis de quase divindades. E divindades que se colocam através do mito maior do individualismo capitalista: Neo é predestinado. “Matrix” dava conta de uma dimensão ontológica. Ao afirmar que um dia as máquinas controlariam o homem e produziriam uma realidade imaginária na qual o homem, mergulhado, acreditaria viver sua normalidade, e que o real mesmo é diferente do que está diante dos sentidos, o filme falava na verdade de um presente em que o homem é já controlado pela máquina – o problema retorna neste segundo filme, no diálogo entre Neo e o conselheiro de Zyon diante das fábricas da cidade – e que nossa realidade, esta que nos cerca, é mesmo ilusória. Não se trata de uma revelação ontológica completa, claro. Não significa que desde sempre a realidade é produzida em computadores. A dimensão do domínio é mais política – o filme remete o tempo todo para um discurso dos movimentos antiglobalização actuais. Já em “Reloaded”, o que aparece é um contexto do que Gilles Deleuze chamou de controle – um sistema em que a própria intermediação do desejo é responsável pela dominação. É o que dá ao filme seu vigor possível. É para isto que ele pode ser proveitoso: como objecto justamente para dar noção de o quão o controle é um dado da realidade. Mas não de uma forma conspiratória e mirabolante e sim nas relações de poder que o jogo tecnológico – ligado em nosso tempo ao consumo – impõe. Nesse sentido, o próprio filme faz pensar sobre o cinema e sobre o estatuto da imagem, que se tornou mais um entorpecente do que uma possibilidade libertadora de conhecimento.
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