Trágico e belo
Pedro Brás Marques
A vida raramente se desenrola como a planeamos e ainda menos como a sonhamos. Quando todo corre mal e da pior maneira possível, onde é que se poderá ir buscar forças para voltar a ver sentido na existência? <br />Esse é o drama de Lee Chandler. Começamos por vê-lo enquanto zelador de vários prédios. Trata de tudo, desde o sistema eléctrico à limpeza. Não se ri, não se interessa verdadeiramente por nada, é a apatia personificada. Sabe de mulheres interessadas nele, mas não devolve a simpatia, antes o vemos bem mais interessado a desentupir sanitas cheias de porcaria. Um dia o telefone toca. O irmão tinha morrido. Regressa à sua cidade natal, onde encontra não só o sobrinho como todo o pesado e terrível passado de que havia fugido. Sim, porque ninguém no seu perfeito juízo aguenta incólume o impacto atómico do drama que ele viveu. Lee perdeu não só o que tinha de mais precioso como ainda viu desaparecer o casamento, a mulher que amava e o próprio gosto pela vida. Mas aquele irmão, Joe, que sabia estar a viver a prazo por via duma doença congénita incurável, deixou-lhe uma tarefa testamentária: confiou-lhe a educação e os bens de Patrick, o seu único filho. E lentamente, Lee começa a preocupar-se, a querer saber… Mas será o suficiente para o fazer emergir das negras profundezas por onde “escorre os medos do mar sem fundo”? <br />“Manchester by the sea” não é uma história de imediata apreensão. É de digestão lenta, feita à mesma velocidade da vida do protagonista interpretado por Casey Affleck. É um filme de personagens marcadas por vivências interiores turbulentas, embora com respostas diferentes. Lee depara-se com uma tragédia exterior a ele e que até poderia ter evitado, já a de Joe é interior e ele nada contribuiu para tal. Cada um à sua maneira lida com as consequências, mas enquanto Lee se fecha em si, Joe percebe o trauma do irmão e deixa-o com a chave da salvação. Ou seja, depois de Scorcese, o silêncio volta a ser protagonista, agora não como demanda espiritual, mas como ausência de vida interior. <br />O filme é rico em simbolismos, bem para lá da amizade fraternal e familiar que se anuncia como o caminho para vencer as maiores dificuldades. Depois, a cidade de Manchester também não é mar, mas também não é terra. Fica naquela indefinição de estar “à beira-mar” o que ganha ainda mais significado se recordarmos a poderosa imagem do barco onde os irmãos se divertiam indo à pesca. A superfície do mar é sempre aquela linha que separa o consciente e o mundo da luz, do inconsciente e do mundo das trevas. O barco está na fronteira. Flutua se for cuidado. Daí o extraordinário diálogo entre Lee e o sobrinho Patrick, em que este avisa o tio de que o barco ainda vai funcionando, mas precisa de revisão do motor, sob pena de ser desmantelado… “At the end of the day, people find some reason to believe”, canta Bruce Springsteen. Lee tinha perdido essa esperança, vagueando sem leme, num corpo sem timoneiro. Mas encontrará o farol na decisão do irmão e um porto seguro na afectividade do sobrinho? Ou estará para todo o sempre prisioneiro da sua culpa? <br />Casey Aflleck dá corpo e alma ao atormentado Lee. Olhar perdido, uma postura de indiferença, um retrato perfeito do que é um ser humano sem qualquer ambição, que espera o desenrolar dos dias com o mesmo interesse que teria ao ver relva a crescer… Um “underacting” maravilhoso, de uma contenção emocional brutal, só quebrada pela ocasional vontade de sofrer, como quando provoca clientes no bar da cidade. Quanto à realização de Kenneth Lonergan, nada a dizer senão que se adequa perfeitamente ao ritmo da história que o próprio escreveu, com tons cinzentos e planos longos a sublinharem a melancolia que perpassa por todo o filme.
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