A vida em contínuo
Carlos Natálio - www.c7nema.net
Reparando bem, é bastante curioso que ninguém ainda antes se tivesse lembrado de juntar as duas linhas estruturantes de "Click", de Frank Coraci. Isto porque parecem tratar-se de dois universos mesmo a pedir para se encontrarem. Por um lado, a mil vezes adaptada (e mil vezes oportunisticamente descontextualizada) estrutura tripartida e moralista de "A Christmas Carol" de Charles Dickens. Por outro, o mundo familiar, bonacheirão e maniqueísta em que se movem quase todas as personagens de Adam Sandler. Desta vez, não é de ganância e falta de espírito natalício que se fala, mas antes do muito contemporâneo binómio vida familiar/vida profissional.<BR/><BR/>Assim, Sandler é Michael Newman, um arquitecto que está a dois passos de lhe ser oferecida parceria no escritório, pelo seu patrão Ammer (David Hasselhoff). Enquanto isso não acontece, vê-se forçado a adiar sucessivos compromissos familiares, deixando a sua esposa Donna (Kate Beckinsale) e seus dois filhos à beira de um ataque de nervos. Vem bem a calhar a Michael, quando numa noite em que sai para comprar um comando universal, um estranho cientista, um estranho Christopher Walken, lhe dá um comando da sua própria vida. Com ele, pode pausar, fazer "fast forward" ou "rewind" tal como se passasse pela sua vida como visse um DVD. É óbvio que esta destrambelhada passagem do tempo proporcionada pelo comando rapidamente fica fora do controlo do seu protagonista, ou Michael não reincidisse no erro de Aladino na escolha desacautelada dos três desejos concedidos pelo génio da lâmpada.<BR/><BR/>Desta forma, vem juntar-se aos dois mundos inicialmente referidos, um terceiro: uma não muito profunda, embora interessante, reflexão sobre o poder da imagem e da tecnologia, como suportes construtores da própria vida. O acto de não viver mas ver-nos a viver, como de certa forma acautelava o situacionismo de Debord. Permitindo assim inscrever este "Click" em 2ares próximos" a "The Truman Show" ou "Ed TV". A não mais que esboçada "mise-en-abîme" que a obra sugere, certamente se completará quando tivermos a oportunidade de ver "Click" nas nossas casas, em formato DVD.<BR/><BR/>O tempo esse, passado em elipses descontroladas, talvez fosse um convite a Coraci para usar Sandler num desfile de "gags" ordinários já vistos em obras como "Mr Deeds", "Little Nicky" ou "Anger Management". Se bem que tais desvarios estão sempre presentes, numa espécie de "trademark" de Sandler, o filme sobrevive, estranhamente ou não, pela boa gestão das principais personagens, dando ao inquestionável talento de Sandler um arquitecto que se arrisca a passar uma vida inteira sem ele próprio e sem as pessoas que gosta. Ou na construção serena e muito humorada de Morty, o cientista guardião de Christopher Walken.<BR/><BR/>E numa visão familiar sobre a tecnologia, a mensagem contra os avanços desmesurados da mesma é clara: na forma como os vizinhos detentores dos "gadgets" mais avançados saem ridicularizados, na forma como se deve privilegiar a família em detrimento do trabalho e sobretudo como se aconselha a ver e participar em contínuo na nossa própria vida. Aliás, trata-se de um filme sobre a tecnologia que apela a um certo conservadorismo narrativo para, a espaços, poder triunfar. Nota: 5,5/10.
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