Em terras da demo-cracia
João Lutas Craveiro
O filme, apesar dos rancores da crítica (que seria dos críticos contratados sem o cajado mediático com que pretendem guiar os públicos-rebanhos?), será um filme de referência e um filme de culto, dentro do seu estilo pós-realista. Diz Rui Poças, responsável pela fotografia, que a personagem Adriana só podia existir na literatura ou no cinema, mas a sua ficção cruza-se com o deambular pelo interior de uma realidade tão contemporânea como absurda (acrescento eu). É um filme coberto de anacronismos, e aí reside a sua força interpretativa: o Governador de uma ilha fala para eleitores, mas a democracia não passa disso mesmo - um exercício de poder pela autoridade do dinheiro e da linhagem. Uma ilha assim seria impensável, pela democratização e pela globalização, mas a ilha torna-se numa ficção oposta à vivida pelos utopianos de T. Moore e o continente é uma expansão dos horrores silenciosos: as personagens movem-se por motivações financeiras e pelo curto-prazo (com excepção da criança-motorista).<br/><br/>Nada parece, no entanto, violento: nem os roubos sobre Adriana nem a usurpação da sua identidade. O mundo convive com todas as diferenças, comprimindo-as à ausência de um projecto colectivo. Este filme, pela anacronia, denuncia o poder económico dominante e a ilusão de que vivemos em democracias: vivemos a (curto-)prazo, com dívidas para pagar e indefinições sobre o nosso carácter, até sobre a nossa identidade. Por vezes preferimos as falsificações ou as reproduções abusivas da originalidade: é isso que nos torna democráticos e sociáveis. Adriana nem sob o seu nome é integrada na família nortenha que começou por ser o seu destino perdido.<br/><br/>Ana Moreira, em Adriana, desempenha também um papel de rara beleza e genuinidade (mesmo com a fala açoriana). A sua representação é, mesmo para a crítica contratada que precisa de parecer inteligente, o que salva o filme. Nesse capítulo diria mais: Ana Moreira é a única que, no filme, leva a sério a sua ficção de representar. Mas o filme é mais que isso: vejam e aprendam que tudo é tão real como a ficção que, também nós, quotidianamente representamos. E é preciso ser-se inocente para, como Adriana, se sair incólume disto tudo!
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