Um retrato fidedigno da decadência de um Estado totalitário
Ivo Miguel Barroso
Evidentemente decadente, o filme é realista, embora com pitadas de humor. É muito preciso – descreve os últimos 12 dias de Hitler retratando-os muito bem. É impressionante verificar, na prática, a concretização do Estado totalitário e da obediência cega de quase todos, em nome do juramento ao Führer e a uma nova Alemanha, revelando a total subordinação e instrumentalização do indivíduo ao Estado. O totalitarismo só entende o homem ao serviços dos superiores interesses da colectividade, protagonizados pelo Estado, segundo a interpretação revelada pela força do detentor supremo do poder político, assistindo-se, em consequência, à completa funcionalização ou à instrumentalização total do homem , que é alvo de uma despersonalização.<BR/><BR/>Hitler, quase já sem poder, na verdade, continuava a ter um imenso poder de domínio. Por outro lado, é demonstrada a irracionalidade de Hitler a toda a prova, como na altura em que diz que conquistou a Europa "sozinho, sozinho". O filme, no entanto, perde um pouco do seu fulgor mais para o final, tornando-se um pouco penoso ver essa parte, por ser excessivamente decadente.<BR/><BR/>Bem a início, a cena do miúdo alemão, no final, não está tão bem conseguida, a meu ver. Não concordo que o filme seja neutro; embora rigoroso, o filme é evidentemente muito crítico em relação ao nacional-socialismo. Na verdade, revela um criticismo, de certo modo óbvio, fazendo lembrar os poemas de Bertolt Brecht: "Dificuldade da governação<BR/>1. Os ministros proclamam incessantemente ao povo / Quão difícil é governar. Sem os ministros / o Trigo crescia pra dentro da terra em vez de pra cima. / Nem uma pedrinha de carvão sairia da mina / Se o Führer não fosse tão sábio. Sem o Ministro da propaganda / Nenhuma mulher se deixaria engravidar. Sem o Ministro da Guerra / Nunca viria uma guerra. Mais: seria muito duvidoso que, / Sem o beneplácito do Führer, o Sol nascesse / De manhã, e se nascesse, então / Seria no sítio errado."<BR/>"3. Se a governação fosse fácil / Não eram precisos espíritos luminosos como o Führer". "4. Ou acaso será / Que a governança seja tão difícil / Por se ter de aprender a explorar e a vigarizar?" (tradução de Paulo Quintela in Obras Completas, Fundação Calouste Gulbenkian, IV, Lisboa, 1999, pg. 457).<BR/><BR/>"O Governo como artista<BR/>1. Na construção de palácios e estádios / Gasta-se muito dinheiro. O governo assemelha-se muito a um jovem artista / Que não receia a fome se se trata / De tornar célebre o seu nome. É verdade / Que a fome, que o governo não receia. / É a fome dos outros, quer dizer / A do povo (tradução de Paulo Quintela in Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 467).<BR/>"(...) 5. Em face da poderosa força do regime / Dos seus acampamentos e caves de tortura / Dos seus polícias bem nutridos / Dos seus juízes intimidados ou subornados / Dos seus ficheiros com as listas de suspeitos / Que enchem edifícios inteiros até ao telhado / Deveria supor-se que ele não teria que recear / A palavra franca dum homem simples." (tradução de Paulo Quintela in Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 462).<BR/><BR/>"Necessidade da propaganda<BR/>(...) 2. Quando o regime num só dia / Mandou abater mil pessoas, sem / Instrução nem sentença judicial, / O Ministro da Propaganda louvou a infinita paciência do Führer / Por ter esperado tanto com a matança / E ter cumulado os patifes de bens e postos de honra / Num discurso tão magistral que nesse dia / Não só os parentes das vítimas / Mas até os próprios carrascos choraram.” (tradução de Paulo Quintela in Obras Completas, FCG, IV, Lisboa, 1999, pg. 458).<BR/><BR/>Em relação aos actores, é de salientar Bruno Ganz, o actor que faz de Hitler, de facto, um papelão. Gostei da actriz que representa Traudle Junge, e do actor que faz de Speeer. Concordo com o crítico do "Público", Luís Miguel Oliveira, que refere o papel do actor que faz de Goebbels está bastante aquém (para quem não soubesse, não se percebia de que personagem se tratava. Por o Estado totalitário, com as características em que surgiu na Alemanha, ser teoricamente um pouco distante da nossa sociedade, é importante uma revisitação a estes últimos dias de Hitler.
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