Domar impulsos
Pedro Brás Marques
A árvore é um símbolo clássico de ligação entre o mundo material e o espiritual. Quando a planta é “brava”, isso quer dizer que é de geração espontânea e indiferente às “regras” do mundo em que se situa. É o que acontece a Sinan, um jovem que regressa da Universidade, depois de terminar o curso. No seu meio rural, pobre e cheio de problemas, ele quer sair da rotina e do destino que parece traçado, só que a sua natureza “selvagem” precisa de ser domada… <br /> <br />Sinan, o que quer mesmo é ser escritor. Já tem um livro, de contos, confessional, pelo que se acha um eleito. Discute de forma arrogante com escritores e com os que o rodeiam, não percebe a beleza das coisas simples da vida, como o Amor declarado por uma paixão de juventude e trata displicentemente o exame de acesso à carreira docente. Talvez tenha alguma alergia ao pai, professor, dividido entre as suas ilusões de negócios de sucesso e o vício do jogo, que tudo perturba na ordem familiar. Portanto, Sinan quer ser diferente e sente-se melhor que os demais, pelo que tenta publicar o seu livro, o farol que lhe vai iluminar a vida, mas ninguém está interessado, desde o presidente da Câmara até ao grande empresário local. Tempos depois, consegue o desiderato, apenas para constatar que ninguém o comprou nas livrarias ou sequer a sua família o leu. Mas esta porta que se fecha, abre-lhe uma outra, cheia de luz, de confiança, de renascimento... <br /> <br />Nuri Bilge Ceylan autor do belíssimo “Era uma vez na Anatólia” (2011), está de regresso depois da obra-prima que foi o fabuloso “Sono de Inverno”, há quatro anos, que lhe valeu, então, a Palma de Ouro de Cannes. Em “A Pereira Brava”, o realizador turco volta a colocar os seus personagens em diálogos longos, debatendo temas tão incomuns como o sentido profundo da literatura ou a relação (im)possível entre religião e modernidade. E fazem-no não parados ou sentados, mas andando, como se a discussão fosse um caminho em direção ao esclarecimento. São momentos ímpares de cinema, em que uma hábil montagem e uma escrita inteligente impedem que as cenas se tornem monótonas, embora fiquem algo aquém do brilhantismo daquele inesquecível diálogo de cerca de quarenta minutos entre marido e mulher em “Sono de Inverno”. Outra imagem de marca de Nuri Bilge Ceylan é a abundância de planos fabulosos, mesmo em cenas de interiores, que se nota terem sido meticulosamente compostos, como se dum quadro clássico se tratasse, conjugados com a fotografia, sempre maravilhosa, do seu eterno colaborador, Gokhan Tiryaki. Tanta excelência quase faz esquecer o único pecado do filme, a mediania das interpretações, em especial a de Dogu Demirkol que dá vida a Sinan, com um dos rostos mais inexpressivos dos últimos tempos. <br /> <br />Num tempo onde a velocidade e os efeitos especiais tomaram de assalto o altar sagrado do cinema, é com um enorme prazer, quase deslumbramento, que se vê um filme como “A Pereira Brava”, onde há tempo para pensar, para apreciar, para degustar a arte cinematográfica em toda a sua excelência. Uma lição de cinema de três horas que, afinal, é uma poderosa lição de vida.
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