Uma Obra de Arte
Ricardo Pereira
Quando a luz se apagar, esqueça da Disney e seus ratinhos saltitantes, cachorros patetas e papagaios dançarinos. Quem vai assistir a um longa-metragem de animação do realizador japonês Hayao Miyazaki deve se preparar para ver uma história cheia de questões morais e personagens bem mais complexos do que aqueles que povoam os parques da Flórida. Mas fique tranquilo: é diversão inteligente garantida para todas as idades. Miyazaki leva o espectador a uma verdadeira viagem com cenas cheias de belezas singulares, como a fuga de Chihiro pelo campo de flores e sua viagem de trem por um caminho inundado pelo mar. “A Viagem de Chihiro”, novo trabalho do Studio Ghibli, custou 19 milhões de dólares, cerca de um quinto de uma produção da Disney, e se transformou no primeiro longa não-americano da história a facturar 200 milhões de dólares, antes de ter sido lançado nos Estados Unidos e na Europa. Escrito pelo próprio Miyazaki, “A Viagem de Chihiro” gira em torno de uma garotinha (sim, a Chihiro do título) cujos pais decidem mudar de cidade. Durante a viagem em direcção ao seu novo lar, no entanto, a família da menina se perde e acaba encontrando um túnel no meio da floresta. Curiosos, os pais da menina resolvem descobrir o que há do outro lado, para desespero de sua filha, que pressente algo de errado no ar. Convencidos de que acharam as ruínas (bem conservadas) de um parque temático desactivado, os pais de Chihiro se surpreendem quando avistam uma mesa repleta de guloseimas – e decidem experimentar a comida. Recusando-se a participar da refeição, a pequena Chihiro se afasta dali e encontra um misterioso garoto, Haku, que a alerta sobre o perigo de permanecer naquele local depois do pôr-do-sol. Infelizmente, o aviso chega tarde demais, e a garota se apavora ao descobrir que seus pais se transformaram em porcos e que o tal “parque temático” é, na realidade, uma casa de banhos frequentada por deuses. Agora, ela precisará se adaptar àquele mundo assustador enquanto tenta encontrar, com a ajuda de Haku, uma forma de salvar seus pais. O realizador, Hayao Miyazaki, afirma definitivamente seu nome na Sétima Arte com essa Obra. Suas produções são conhecidas, principalmente pela narrativa não-ordenada, e por seu trabalho artesanal, já que o filme é todo desenhado à mão antes de ser computadorizado. Miyazaki não se preocupa em fazer personagens bonitinhos e carismáticos, pelo contrário, vemos um mundo povoado com seres bizarros e estranhos. Além disso, não temos uma batalha onde se define o bem e o mal (tão comum em enredos infantis), e muito menos a história é centrada na derrota ou heroísmo de algum personagem. O que há é um complexo caminho, por onde Chihiro deve passar, conhecendo um mundo diferente do seu, superando dificuldades para "se encontrar" novamente. E isso tudo, sem precisar apelar para a violência ou o humor exacerbado, como vem acontecendo com os últimos desenhos japoneses. Em matéria de qualidade e acabamento estético, “A Viagem de Chihiro” se encontra a alguns quilómetros de distância da bobagem Pokémon, e até mesmo do interessante “Akira” (cultuado longa futurista de Katsuhiro Otomo, de 1987); Miyakazi construiu uma carreira respeitável com filmes que apontam novos caminhos para um nicho firmado em ícones da cultura tradicional japonesa. A trajectória do cineasta tem mais de trinta anos, mas ganhou projecção surpreendente a partir da criação do estúdio Ghibli, em 1985. Não tardou para que os ocidentais espiassem a pequena revolução de Miyazaki. O idílico “Meu vizinho Totoro” (1988) fez fãs como o cineasta John Lesseter, da Pixar — ele confessa que Ghibli foi uma inspiração quando da abertura do estúdio de “Monsters Inc.” e “Searching Nemo”. Produções posteriores, como “O serviço de entrega de Kiki” (1989), ganharam distribuição garantida na Europa e nos Estados Unidos. O clima de unanimidade, porém, chegaria apenas em 1997, com “A princesa Mononoke”, fita sombria e pessimista, que rendeu a Miyazaki um colapso nervoso e o anúncio de que estaria para se aposentar em breve. Em “A Viagem de Chihiro”, o realizador deixa de lado o tom pesado e injecta leveza a uma aventura semelhante. A beleza das imagens e a sensibilidade de Hayao Miyazaki fazem de “A Viagem de Chihiro” um filme rico, múltiplo e imperdível.
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