O eu e o nós
António Marques
A sempre arriscada tentativa de obter um equilíbrio entre a vida profissional, perto do sucesso, e a pessoal, junto a quem se ama, é a base desta quarta versão de “Assim nasce uma Estrela”, agora adaptada aos gostos e às cores contemporâneas. <br />Jackson é uma super-estrela no firmamento do country-rock, mas eclipsa-se atrás de garrafas de gin e de bourbon. Um dia, em carência, resolve entrar no primeiro bar que encontra e é aí, no meio de drag queens, que descobre Ally, por quem se apaixona perdidamente. Jackson tem uma alma de ouro. Nunca vira a cara a um fã, nunca mostra inveja dos demais cantores e assume como objectivo partilhar as luzes da ribalta com Ally. Mais: ele quer que ela brilhe, que tenha sucesso, que conquiste o Mundo. Só que Jackson carrega, desde muito novo, um pesado fardo: é um dependente, alimentando-se de álcool e drogas. O passado, longínquo, onde pontifica uma relação turbulenta com o pai, nunca o largou. Ele tem presente, qual Fausto, que se foi esse passado que lhe deu a alma para ele construir as suas canções, também será esse passado a decidir o seu futuro quando encontra Ally. Vê nela a esperança para alterar a sua vida, mas será uma mudança eficaz ou tudo não passa de vã fantasia, tal como os homens daquele bar primordial que se vestem de mulheres para parecerem uma, bem sabendo que o sonho é inalcançável? Jackson percebe, então, que não há espaço nem conciliação possível na resposta à pergunta sobre o que é mais importante: a sua vida ou a da mulher amada? <br />Os limites do amor já foram explorados sob todas as formas artísticas, algumas vezes levados a um extremo em que só quem está “dentro da relação” conseguirá entender e aceitar – quem tiver dúvidas, pode eliminá-las em “L’Amour”, de Michael Haneke. Jackson, preso entre o vício e a virtude, prenuncia tragédia desde a primeira vez que nos aparece no écrã. Mas este complexo dilema é trasposto de forma magnífica por aquela que será, porventura, a melhor interpretação de Bradley Cooper até à data. Algures entre o registo de Kris Kristoffsen na versão de 1976 e o look rebelde de Eddie Vedder, dos Pearl Jam, o actor vive os silêncios da personagem, bem como os olhares perdidos e a forma como olha para a amada, transmitindo na perfeição a tempestade emocional que lhe agonia a alma. Já Lady Gaga, surpreende, talvez mais porque ninguém a estava a ver num registo tão “pesado” como este, vindo, como ela vinha, da superficialidade pop e de alguma vulgaridade exibicionista. Mas o Bradley Cooper- realizador consegue mantê-la na linha e ela à personagem. Aliás, Jackson, logo no início da carreira de Ally, dá-lhe a chave do sucesso: “Olha, o talento está em todo o lado, mas ter algo a dizer e uma maneira de dizer isso para que as pessoas o ouçam, já é algo totalmente diferente. E a menos que encares isso e tentes fazer isso, nunca o saberás. Isso, é apenas a verdade”. <br />A verdade. É precisamente isso que faz toda a diferença entre o falso e o verdadeiro, entre o simulado e o real. As verdadeiras estrelas são reais, são aquelas que nasceram com um dom, conseguem assumi-lo e, mais, transmiti-lo. Jackson era um deles e fez com que Ally também o alcançasse. Mas foi precisamente essa verdade, essa capacidade de ver a realidade como ela é e não como se gostava que ela fosse, que traça o destino das personagens, em especial o de Jackson. <br />“Assim nasce uma Estrela” é um filme acima da média que só perde em algumas concessões que apenas podem ter explicação do ponto de vista comercial. Se Jackson brilha no seio do mundo country-rock, Ally atravessa tudo desde rock de estádio até baladas que Whitney Houston não desdenharia, passando por momentos pop com irritantes dancinhas sincronizadas à la Justin Binber… Enfim, se nasceu uma estrela, ela chama-se Bradley Cooper.
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