Tirania actualizada e terrorismo ambíguo
Rita Almeida (http://cinerama.blogs.sapo.pt/)
A 5 de Novembro de 1605, Guy Fawkes foi detido num túnel debaixo do Parlamento britânico na posse de 36 barris de pólvora destinados a derrubar a tirania do Rei James I e colocar um rei católico no trono. Fawkes e os seus colaboradores foram enforcados. Em 1982, Alan Moore, em colaboração com o artista gráfico David Lloyd, escreveu a banda desenhada "V for Vendetta", um velado (ou nem tanto) ataque às políticas conservadoras de Margaret Thatcher e um grito pela liberdade e pela justiça. Em 2005, o argumento dos irmãos Andy e Larry Wachowski ("Matrix") (adaptação largamente criticada pelo próprio Alan Moore), nas mãos do estreante James McTeigue (assistente de realização em "Matrix"), manteve a Inglaterra mas actualizou-a para um futuro próximo, onde um governo conservador e totalitário, liderado pelo maníaco Chanceler Sutler (John Hurt), domina a população usando o medo como arma (isto é ficção, certo?!), eliminando tudo o que é diferente.<BR/><BR/>Evey (Natalie Portman), filha de radicais anti-governamentais, trabalha no departamento de correspondência da única estação de televisão existente. Uma noite, depois do recolher obrigatório, Evey é detida pela segurança governamental ("Fingers") e é salva por um vigilante mascarado, de seu nome V. V (Hugo Weaving) é um revolucionário que usa o exemplo de Guy Fawkes (e a sua máscara) na sua luta por libertar a Inglaterra da corrupção, da crueldade e das mentiras do governo. Evey vê-se apanhada no meio do plano de vingança de V, que pretende fazer explodir as Houses of Parliament no 5 de Novembro seguinte. Um diligente investigador do governo Finch (Stephen Rea) tenta evitar o pior.<BR/><BR/>V usa um vocabulário sofisticado (a aliteração usada numa das primeiras falas é desconcertante), ao mesmo tempo que brade armas brancas com uma elegância oriental. Num misto de loucura, melancolia e teatralidade ("à la" Fantasma da Ópera), faz a constante evocação de Edmond Dantes, o Conde de Monte Cristo, e a sua sede de vingança. No fundo, V é um assassino que justifica a sua violência com o fim a que se destina. E não deixa de ser controverso que a lógica maquiavélica possa ser aqui usada para justificar a superioridade de um tipo de terrorismo sobre outro.<BR/><BR/>Polémicas aparte, este filme é um regalo, na sua mistura de mito e história com teoria da conspiração, e com claras referências ao universo de "1984" de Orwell (cuja adaptação ao cinema em 1984 por Michael Radford contou também com a participação de John Hurt, desta feita no papel do oprimido Winston Smith). Novamente se questiona de que direitos o povo está disposto a abdicar pela promessa de segurança. Qual a melhor forma de um governo capitalizar o medo para seu próprio benefício? Haverá causas pela quais vale a pena lutar? E morrer?<BR/><BR/>Ironicamente, o grande vilão deste filme acaba por ser nem tanto o Chanceler ou o que ele representa, mas sim a grande massa de população que se torna conivente com sistemas deste tipo, a maioria das vezes por simples preguiça. E eles são todos nós (bem, talvez exceptuando uns quantos estudantes franceses...). E não deixa de ser refrescante que uma multidão indefinida e sem feições se transforme num conjunto de individualidades.<BR/><BR/>A história de "V for Vendetta" é um "puzzle" que se vai desvendando em pistas sucessivas e que conta com um conjunto de boas interpretações. Natalie Portman apresenta uma transformação impressionante e consistente; e Hugo Weaving consegue dotar uma personagem mascarada de grande humanidade, quer através da sua poderosa voz, quer dos movimentos corporais. Aliás, "V for Vendetta" tem o mérito de, no meio de grandes efeitos visuais, nunca se esquecer da base humana. Nos secundários, estão três sólidos pesos-pesados: Stephen Rea, John Hurt e Stephen Fry.<BR/><BR/>Este filme é ambíguo, dramático e intenso. Vale a pena ver. E pensar sobre. E no ambiente escuro e opressivo da fotografia de Adrian Biddle, só apetece ouvir (e dançar!) "Cry Me a River". Nota: 4/5.
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