Dois idiomas: homem mulher
Rita Almeida - http://cinerama.blogs.sapo.pt/
Mirabelle (Claire Danes) é uma jovem solitária que veio do Vermont para Los Angeles em busca do seu caminho. Enquanto vai vendendo um ou outro dos seus desenhos, trabalha no departamento de luvas da Saks Fifth Avenue. Vive a sua vida quase como um fantasma, um espírito sonhador, à espera de ser despertado do seu sono, como se fosse mais um dos manequins da loja. Numa lavandaria, Mirabelle conhece Jeremy (Jason Schwartzman), um enérgico e desajeitado desenhador de fontes e vendedor de amplificadores. Parece não haver nada em comum entre os dois, excepto a necessidade de carinho, e o encantamento de Jeremy por Mirabelle é recebido por esta com alguma frieza. É então que, na loja, surge Ray Porter (Steve Martin, autor do livro que serve de base ao filme), um charmoso e sofisticado homem de negócios que a convida para jantar.<BR/><BR/>Mirabelle não hesita na sua escolha, e quando Jeremy decide acompanhar a digressão de uma banda de rock, o foco passa para a relação entre Mirabelle e Ray. Um dos méritos deste filme é nunca mostrar o romance entre um homem de 60 e a uma mulher de 20 e tais como algo inapropriado ou repugnante. Ray é honesto com Mirabelle quando lhe diz que necessita que a relação de ambos não seja um compromisso a longo prazo e ela concorda. Mas o filme vai-nos mostrando como as mesmas palavras são interpretadas de formas diferentes por cada um deles. A atenção, o tempo e o dinheiro que ele despende com Mirabelle não conseguem suprir a falta do mais importante: a ligação emocional, da qual ele parece ser, inevitavelmente, incapaz.<BR/><BR/>A abordagem desta relação é feita de uma forma sombria, e o humor e a cor são deixados para Jeremy, cuja viagem, onde é impulsionado pelo líder da banda (Mark Kozelek, cantor dos Red House Painters) a "ler" livros de auto-ajuda gravados em cassete, fará parte do seu crescimento pessoal. A personalidade de Mirabelle vai-se também tornando mais complexa ao longo do filme. Ela nunca tem uma abordagem predatória em relação a Ray, mas existe, em alguns momentos, uma suave manipulação. As suas lutas são pouco heróicas, como o comum mortal apenas tenta ser feliz. Mas as suas decisões acerca da vida e do amor acarretam coragem. No final, a transformação de Mirabelle acaba por ter pouco a ver com o ser amada, é o seu despertar para ela mesma, a sua transição para a maturidade. Mirabelle começa por tentar medir o amor no abraço que recebe depois do sexo, e quando recebe, finalmente, o voto de protecção ansiado, ela já tem em si a força necessária para não precisar dele.<BR/><BR/>Anand Tucker ("Hillary and Jackie", 1998) centra a sua realização estilizada em momentos concretos, para contar uma história não exactamente imprevisível. Nunca se afastando das expectativas e percepções das personagens, a densidade e autenticidade com que nos faz entrar no seu mundo, entre erros e acertos, aproxima-nos, sobretudo, das suas fraquezas tão humanas. E, neste caso, ao contrário dos triângulos amorosos habituais, onde costuma haver uma parte que é quase desprezível, tanto Jeremy como Ray são pessoas verdadeiras e sinceras.<BR/><BR/>Ao argumento cru e observador, engraçado, emotivo e cheio de detalhes (onde o grande senão é uma desnecessária voz "off") juntam-se três fortes interpretações. De beleza simples e serena, Danes assume totalmente todas as facetas de Mirabelle - frágil, sexy, forte, inteligente - com uma expressividade e rigor físico suficientes para nos levar por todas as emoções de Mirabelle sem serem precisas palavras. Steve Martin é perfeitamente credível como o solteirão solitário e conformado com as suas limitações, acrescentando a dose correcta de melancolia que impede Ray de se tornar um "velho nojento". O Jeremy de Schwartzman é adorável na sua ingénua mas profunda forma de ver a vida.<BR/><BR/>"Shopgirl" é um filme romântico sem o romance, uma história de amor sem corações e flores por todo o lado, um filme cheio de solidão e melancolia onde a dor é o instrumento da sabedoria. Um olhar agridoce sobre as relações amorosas, onde o que se ouve nem sempre é o que se diz e as consequências que isso pode ter. Fala do que procuramos, das expectativas que se criam, dos medos e daquilo com que tantas vezes nos contentamos. É também um filme sobre a comunicação entre dois idiomas distintos: o homem e a mulher.
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