Indie family movie
Carlos Natálio - www.c7nema.net
"Little Miss Sunshine", etiquetado como recente sensação do cinema independente americano, confirma cabalmente o várias vezes já referido e laborioso processo de expansão do universo "indie" a públicos mais generalistas. É com empolgamento ou receio de traição, consoante as perspectivas, que se vai assistindo a um movimento de "canibalismo" de temas, expressões, olhares doentios, outrora reservado a públicos construídos pela dignidade de estar à margem. Ou por outra, uma super-estrutura que vai lentamente digerindo e assimilando um nicho de irreverência, canalizando-o para um grande público, cada vez mais farto de estrelas e chavões. Momento sintomático dessa apropriação comprovou-se este ano, com a vitória na cerimónia dos Óscares, contra todas as expectativas, de "Crash", de Paul Haggis, na categoria de melhor filme. Mas pensar que essa fusão parte exclusivamente da iniciativa do mais forte é ser ingénuo e só ver parte da questão. Ao invés, a própria estrutura "indie" vai sendo dotada de outras preocupações que condicionam muitas das escolhas que enformam filmes como os recentes "Thumbsucker" de Mike Mills ou mesmo "The Squid and the Whale" de Noah Baumbach, este com um salto de Sundance para os Óscares.<BR/><BR/>Talvez por isso, "Little Miss Sunshine" nos surja rotulado como uma comédia "indie" em tons negros, estruturada em "road movie", sobre o tema "indie" mais "batido" - a família norte-americana disfuncional - e acabe por se revelar uma obra solar, expondo um didactismo optimista, traduzida numa apoteose final, para bem de todas as famílias. Ou por outras palavras, um "feel good movie", transmitindo ao espectador um pouco da irreverência "indie" num "pack" mais maneirinho, "light" diríamos.<BR/><BR/>Assim, fala-se de uma família americana de opostos (disfuncional ou tipo, escolha você mesmo), cada um incapaz de lidar com o hipotético fracasso: o pai (Greg Kinnear), expoente de determinação, vivendo segundo (e do) esquema dos "nove passos" para o sucesso; o tio (Steve Carell), professor homossexual que se tenta suicidar devido a um desgosto de amor; a mãe (Toni Collette) a tentar remendar os problemas familiares; o avô (Alan Arkin) desbocado e viciado em heroína; o filho (Paul Dano), adolescente admirador de Nietzsche que fez um voto de silêncio até ser admitido na escola de aviação; e finalmente a filha, Olive (Abigail Breslin), que aos sete anos só pensa em ganhar o concurso infantil Mrs. Little Miss Sunshine.<br/><br/>Se toda a família oscila entre a determinação cega e o nihilismo, cada um com os seus estratagemas de ilusão, Olive acaba por ser a interrogação para o futuro, em quem mais fortemente se poderá observar os resultados de uma terapia de grupo que toda a família enceta quando viaja numa velha carrinha Volkswagen, do Novo México à Califórnia, para levar a pequena ao referido concurso. Pelo caminho, alguns hilariantes problemas de locomoção e lições de vida do género: é ténue a linha entre o fracasso e o sucesso; a beleza é subjectiva, o importante é participar e não desistir, etc., etc..<BR/><BR/>Se é certo que as "armas" estão apontadas a uma mentalidade competitiva bacoca norte-americana, a facilidade das conclusões extraídas ("Life is one fuckin' beauty contest after another") arranca sorrisos, pelo menos ao olhar europeu. Sorrimos porque de lá se considera estar a fazer um filme ousado, criando antes, neste tipo de mutação "indie/family movie", um grupo de clichés de crítica ao estilo de vida americano efectuado pelos próprios. Longe estamos assim dos "processos mais destrutivos e impenetráveis" de instituições sagradas, das primeiras obras de um Terry Zwigoff ou de Todd Solondz.<BR/><BR/>Resta uma referência à inteligente utilização da música nos pontos altos da viagem em família, fazendo jus à carreira na realização de videoclips musicais da dupla de realizadores Jonathan Dayton e Valerie Faris. Outro ponto forte da obra, que conquistou o prémio do público no festival de San Sebastián, é certamente todo o trabalho de "casting". Destaque para o minimalismo assombroso de Steve Farrel, próximo de Bill Murray, e dos jorros de expressividade que brotam do trabalho prodigioso de composição da jovem Abigail Breslin. Nota: 7/10.
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