Um tributo diferente
Pedro Maia
"Ray" não é um "biopic" típico. Ou seja, não é um "biopic" típico na medida em que não se trata de um "tributo" de um actor ou realizador a um personagem passivo e reinterpretado, mas sim de uma verdadeira colaboração entre essa personalidade e uma equipa que lhe é devota. Nisto, "Ray" é muito mais igual ao personagem que retrata do que qualquer outro tributo. Ray Charles escolheu o actor, Ray Charles deu os dados para a realização das cenas, incluindo as mulheres, a dependência de drogas, o segregacionismo, os revezes, que foram muitos. E o próprio Ray impediu que se falasse demasiado do seu papel como financiador de Martin Luther King, sabendo-se hoje em dia que foi uma das pessoas que desde a primeira hora mais contribuiu para o activismo do sacerdote (o argumentista Jimmy White viu vários pontos altos da carreira de Ray Charles serem riscados do argumento pelo próprio, como o "spot" para a Pepsi-Cola ou o seu álbum country para a Atlantic, que lhe relançou a carreira).<br/><br/>Ou seja, Ray Charles não se permitiu ser retratado como alguém que foi passando pela vida colhendo alegrias e sofrendo golpes; assumiu que muitos dos seus golpes foram infligidos a si próprio. Daí que surja como primeiro "hit" da sua carreira "The mess around", música extremamente menor do seu repertório, quase não referenciada nas biografias de Ray e mesmo na sua autobiografia referida de passagem. Mas este filme é acerca de soul, e de como o "estado de alma" é mais importante do que os resultados que dele advêm. E foi assim com Ray: tendo aquele momento mágico ficou para ele destinado um caminho que Ray seguiu, tocado por Deus mas com o "típico" negócio com o Diabo, feito numa qualquer encruzilhada empoeirada da Geórgia.<br/><br/>Mesmo o tempo destinado a Mary Anne, que nunca foi um dado importante na vida de Ray, não tendo afectado a sua relação com a sua companheira de sempre, é uma prova de que "Ray" pretende apresentar-nos o Génio em toda a sua realidade, sem julgamentos fáceis, sem planos simplificados das escolhas que ele teve de fazer. Mesmo o segregacionismo é visto através do pragmatismo do autor, com várias tiradas de humor e muita vontade. O lado de "testamento" do filme culmina no final em 1979, com o Estado da Geórgia a reconhecer "Geórgia on my mind" como o hino oficial, num universalismo que se quer sempre para a música: que sirva para unir e não para separar.<br/><br/>Tudo o resto que se possa criticar neste filme (e os habituais "cromos da bola" o farão, sem dúvida, desenterrando um "Bird" aqui, um "Blues Brothers" ali, dizendo que falta qualquer coisa, acrescentando qualquer coisa) é reduzi-lo a um trabalho de actor, mesmo isso não sendo o mais importante, pois Ray Charles insistiu para que o actor nomeado passasse consigo várias horas por dia e andasse cego para compreender as limitações e desafios que isso representava, tendo portanto influência no "método" usado.
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