Um filme que explora a dualidade de uma forma bastante subtil e interessante, em que ninguém é aquilo que parece, em que ninguém é apenas uma coisa ou outra: uma senhora de classe média, aparentemente respeitável com uma filha e a sua própria loja, que comete crimes hediondos; uma criança dócil capaz de matar se os seus desejos não são atendidos; um "monstro" com um coração de ouro; e uma Karoline a ser constantemente iniciada, na procura pelos seus próprios princípios de bem e mal, primeiro pela traição do masculino, e depois por Dagmar, uma espécie de Baba Yaga que lhe mostra não só os prazeres da vida como também a faz provar do seu próprio veneno, numa das cenas mais fortes do filme em que juntas acabam por sufocar mais um bebé sem que Karoline se recuse inteiramente ou tenha forças suficientes para resistir? Apenas no final fará o que deve ser feito e encontrará a sua redenção.

Dagmar é julgada no final quase em praça pública mas não sem antes de mostrar a todas aquelas dezenas de mães indignadas que nenhuma delas é melhor do que ela, uma espécie de espelho das suas próprias sombras, ainda que aparentemente as circunstâncias da época tudo pudessem desculpar. Interessante ver também que o verdadeiro motivo dos assassínios acaba por ficar um pouco em aberto: por dinheiro? Por princípio ou apenas para vingar os seus cinco filhos nascidos mortos? A destacar, as excelentes interpretações das duas actrizes principais e a excelente fotografia; um dos raros filmes a preto e branco que consegui ver sem me deixar dormir…

"A Rapariga da Agulha" (candidato pela Dinamarca ao Óscar de melhor filme internacional, após também ter estado na corrida pela Palma de Ouro no Festival de Cannes), dirigido pelo sueco Magnus Von Horn, é um (melo)drama(lhão) social de época, polvilhado com ingredientes géneros body horror, true crime e suspense. Vagamente baseado em factos reais (em relação à personagem da serial killer infanticida), é-nos apresentado sob a forma de anti-conto de fadas para adultos (sem direito a happy end).

Ambientado na sombria Copenhaga de 1919 (aquando do término da I Guerra Mundial), tem por personagem central uma das muitas mulheres zombies do povo oprimidas pelo patriarcado e sugadas pelo capitalismo selvagem. Neste caso, uma ex-operária fabril, alegadamente viúva (o marido desapareceu na guerra, há mais de um ano), despejada do quarto precário em que morava (por falta de pagamento), e com um bebé do patrão no bucho (indutor do seu despedimento) que terá futuro uma "agência de adopção" clandestina a funcionar numa loja de doces.

Apesar de infernizar-nos com um desesperançoso e hiperbólico folhetim de faca e alguidar (quase gótico) povoado exclusivamente por "feios, porcos e maus" (um patético "circo de horrores"), o cineasta consegue manter-nos "cativos (apenas) pelo olho". De facto, a sua estética lúgubre (algo neoexpressionista), decorrente da opção por uma estilizada fotografia a preto e branco de altissimo contraste (bem como do recurso a constantes close-ups dos diabólicos rostos banhados por sombras), é indiscutivelmente divinal. Uma outra bóia de salvação deste filme é a talentosa dupla de protagonistas (Trine Dyrholm e Vic Carmen Sonne), que personifica a banalidade do mal.

Posto isto, resta-me lamentar a autêntico blasfémia de alguns críticos especializados ao tentar colar esta obra aos universos de David Lynch e Cronenberg (até porque a ter de apelar a Mestres, parece-me apresentar mais resquícios do Haneke).

Sordidez aliada a um moralismo básico. Gostei das duas personagens principais (as duas mulheres). Um mundo melhor com este final, eu diria um final simpático no meio de toda a podridão do mundo. O marido de Karolina é uma personagem que valida algum otimismo no filme mas tinha de ser uma personagem "disforme"... um pouco básico este contraste entre os bons e os maus.