Se isto é um western...
Pedro Vardasca
<p>Tal como a exibição de um alfinete de dama por um punk rocker acabado de fazer 20 anos não tem exactamente o mesmo significado de se ter assistido à estreia dos Sex Pistols no 100 Club, também o reiterado regresso ao western não corresponde à ressurreição do género, há muito terminado como peça expressiva da indústria cinematográfica. Ainda assim, o interesse pelo estado deste antigo reduto de Hollywood revela uma extraordinária perenidade, reavivado a cada nova presença nas salas, embora o produto da análise se assemelhe, normalmente, a um relatório de uma autópsia.<br /><br />Para mágoa dos amadores da dissecação, é impossível enquadrar "O Atalho" na discussão do que o género representa no cinema de hoje, pois sabemos, desde o início do filme, que a acção se desenrola em 1845, o que inviabiliza o rótulo de western, cujo período histórico se localiza nas décadas subsequentes à Guerra de Secessão, com maior incidência na de 80. Como este pormenor cronológico não é acessório, obrigamo-nos a redireccionar o olhar, postando-o fora das convenções da mitologia erigida pelos grandes cultores do western.<br /><br />A narrativa incide sobre um grupo de pioneiros, perdidos algures na desolação do Oregon. A paisagem é exactamente aquela que serve de cenário aos aventureiros dos filmes clássicos, mas o território não estava ainda sob controlo norte-americano, o que só aconteceria em 1846. Neste sentido, os problemas destas famílias referem-se exclusivamente à sobrevivência, necessidade que os lança numa busca desesperada por água, sem que se verifique a participação num esforço colectivo numa região de fronteira do jovem país. As carroças avançam dolorosamente num meio hostil, distantes da presença de qualquer autoridade ou forma de Estado. Não há ataques de índios como manifesto de um choque civilizacional, duelos quando o Sol se esconde no horizonte, rancheiros desavindos pela partilha da terra, "saloons" com balcões a transbordar de gente ébria, manadas a atravessar as pastagens, xerifes a impor a ordem no seio da violência, assaltos a bancos e a diligências, caminhos-de-ferro e telégrafo a anunciarem que o tempo não pára, sólidas amizades masculinas, enfim, não há sinais que especifiquem a presença do western.<br /><br />Por isso, "O Atalho" é outra coisa, talvez uma vinheta sobre um começo modesto, uma nação que se ergue pela via da tenacidade, acalentada pela entoação nocturna de hinos protestantes, uma matriz fundadora que persiste no imaginário norte-americano até ao presente, mesmo que as mutações no tecido social do país nunca tenham cessado. Quando o nosso olhar se detém, percebemos os conflitos emergentes numa sociedade que, com grande esforço, se fez multirracial.<br /><br />A polarização fica a expensas de duas personagens, o guia Stephen Meek, símbolo da intolerância e do espírito de facção que atormentará por muito tempo os Estados Unidos - neste caso para com um nativo americano, entretanto capturado - e a colona Emily Tetherow, apologista da conservação da vida do índio, observado como parte importante na busca que os ocupava, indício de um pensamento integracionista. Entre as duas atitudes, posiciona-se o medo, a incerteza, a desesperança, mas também a fé dos restantes pioneiros, embora a determinação da jovem conduza o grupo pela via da vida, enquanto Meek vaticina a desgraça pela presença do estranho.<br /><br />Alguns apelidaram a narrativa de alegoria, expressão muito satisfatória - e simultaneamente limitada - para o filme de Kelly Reichardt. O silêncio que acompanha a caravana ao longo da jornada representa convincentemente a angústia que flagela a humanidade, consciente das incertezas que sempre atravessaram o espírito dos homens. Em certa medida, "O Atalho" acaba por contextualizar uma veia introspectiva mais comum à cultura e ao pensamento escandinavo num cenário talhado para a acção, o que conferirá originalidade a uma história normalmente retratada com as cores do heroísmo. <br /><br />No entanto, no cinema as ideias, devidamente urdidas para que configurem uma mensagem, nem sempre chegam, como parece acontecer neste microcosmos à deriva. É fácil de perceber que pouco acontece na vastidão, mas esse vazio não pode organizar a cadência de um filme, ou seja, o deserto deve ser preenchido pela espessura das personagens e das experiências que a cada dia se erguem. Neste sentido, "O Atalho" é ultra minimalista, reduzindo-se praticamente ao triângulo descrito, sem existência convincente dos restantes pioneiros, quase tão inexpressivos como o terreno sulcado pelas carroças. É pouco para cinema.</p>
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