Modigliani ou o Karate Kid da pintura
David Cabral
"Modigliani", de Mick Davis, é um filme que não chega a desiludir porque não chega a começar. A primeira cena passa-se num café de Paris, no início do séc. XX - música típica e meia dúzia de personagens que fizeram a história da vida boémia da época, onde não falta um Picasso obeso. O ambiente é teatral e parece-nos ainda ouvir as recomendações: "Chega-te mais para ali. O 'clown' fica bem lá trás. Por trás do Picasso… blá, blá. Acção!" Aguardamos ansiosamente o início da história. Picasso acaba de desenhar e o empregado pergunta-lhe num inglês esfarrapado: "Senhor Picasso, não assina o seu desenho?", e Picasso responde num inglês ainda pior: "Quero comprar o jantar e não o restaurante". Espera aí, eu já ouvi isto em qualquer lado...<BR/><BR/>Cortamos para uma mulher que aguarda, fora do restaurante, com um bebé. Um homem está ao seu lado. Ela diz: "Tenho que falar com ele". E o homem responde: "Vamos para casa. Sou o teu pai. Eu é que digo o que deves fazer"... E assim lá se vai o "establishing2 para as urtigas. Volvidos cinco minutos, para além de sabermos que o protagonista, que ainda não vimos, foi pai recentemente, também sabemos que o "sogro" exerce enorme influência sobre o interesse amoroso (Jeanne) do protagonista. Estamos portanto a oscilar entre lugares comuns e diálogos pueris.<BR/><BR/>Finalmente conhecemos o protagonista, Modigliani (Andy Garcia), no dito café de Paris. O cliché do artista amado e incompreendido, garrafa de vinho na mão e rosa atravessada na boca. Todo o filme continua de cliché em cliché até ao cliché final. Modigliani é judeu, o sogro não gosta dele. Tudo isto é-nos dito de forma óbvia e com diálogos de novela mexicana (das más). A realidade histórica como a paixão em Modigliani pela escultura africana e pela escultura em geral, as suas viagens a Itália, a sua amizade com Picasso (retratado como uma espécie de árabe obeso, que anda de revólver na mão) é deixada para trás. Pensei que isto era o filme mas estava enganado.<BR/><BR/>A meio da obra que não começou, Davis resolve colocar uma história. A história do Karate Kid. Pensem bem: foi Davis que escreveu "Wake of Death" para Van Damme, é um realizador versado nas artes marciais. Para mais deve ter pensado que Modigliani é um nome italiano, tal como Daniel La Russo. São coincidências a mais... Tal como no clássico dos anos oitenta, assistimos a um torneio, neste caso um concurso de pintura. Modigliani terá que lutar contra um grupo de pintores em que se destaca Picasso e o seu séquito (Olga Koklova, sua esposa e o malvado Jean Cocteau) qual "Cobra Kay" do modernismo. Tudo se encerra numa noite de pintura alucinante, ao som de uma ópera "trashy", pseudo-New Wave, que faz com que o "Eyes of the Tiger" pareça um hino. Todos treinam para o grande concurso. Fingem que pintam, sem que se veja o que pintam. Saltam, gritam, entram em fúria ou êxtase, dão-nos, em suma, mais um cliché da criação artística. Mas ao romper da aurora, exaustos, mas felizes, todos consideram concluída a obra. <BR/><BR/>Davis é aquele tipo de realizador que ainda pensa que os espectadores têm paciência para ver por exemplo um "biopic" sobre um pianista sem que o actor que o interpreta saiba tocar piano. É que Garcia não chega a dar duas pinceladas durante todo o filme. No final, na grande noite da decisão, quando Rivera, Picasso e "sus muchachos" mostram os seus quadros grandes e coloridos, são derrotados pela simplicidade de Modigliani. Todos batem palmas ao pintor italiano como se o reconhecimento da qualidade de um quadro fosse uma coisa automática. Para ser mais trágico Modigliani morre. Pelo menos o filme tem meio e fim, só lhe falta o princípio.<BR/><BR/>E quem se lixa é o mexilhão. Modigliani precursor da vanguarda do movimento modernista e pintor de excepção é neste filme reduzido a um amante latino barato, de beijo na boca. Os seus quadros originais não são mostrados por exigência prévia da família do pintor (bastante inteligente) e a sua vida é reduzida a um conjunto de banalidades e lugares comuns. Modigliani merecia melhor… mas também o Karate Kid.
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