Família
Pedro Brás Marques
“Minari” é uma belíssima homenagem a uma instituição milenar, a família. Lee Isaac Chung, o realizador americano de origem coreana, teve a capacidade e o génio de a apresentar nas suas diversas vertentes imateriais, desde quem se considera ser os seus elementos, os efeitos da passagem do tempo, a herança intangível chamada sabedoria e que forma uma cadeia invisível de apoio e, claro, a massa que tudo une, o amor. <br /> <br />O cenário é a América rural, onde chega uma família de emigrantes coreana, constituída pelo casal Jacob e Monica e pelos dois filhos, Anne e David. Vieram da Califórnia e foram parar ao meio do Arkansas, a uma ‘smalltown’ idêntica a tantas outras, porque Jacob persegue o seu sonho de ser agricultor, produzindo para os milhares de coreanos que, anualmente, chegam à “Promised Land” à procura do sonho americano, tal como eles. A família sente-se algo arrastada, mas aceita e apoia-o. Para sobreviverem, trabalham numa fábrica ligada à pecuária, onde executam um serviço algo peculiar: separam os pintos fêmeas dos machos, enviando estes para o extermínio, porque a sua carne não é tão boa para ser vendida… Envolvem-se na comunidade, até vão à Igreja e as coisas lá vão correndo. Até que chega a avó dos miúdos, Soonja. Brincalhona, irreverente, sem tento na língua, provoca uma alteração nas águas pacíficas da família, enquanto constrói uma ligação muito especial com os netos, especialmente com David, a quem vai ensinar a plantar ‘minari’, uma espécie de salsa ou aipo de origem coreana. Um gesto inócuo, mas de consequências extraordinárias. <br /> <br />Esta é uma história de superação, de conquista e, principalmente, de epifania familiar, sabiamente enriquecida com episódios duma extraordinária carga simbólica, evocando outros que fazem parte da nossa memória colectiva. Vejamos: desde logo, o nome do protagonista, Jacob sinónimo de Israel e pai de família prolífico. Depois, esta família personifica milhões de outras, as que tentam singrar fora do lar, num país que não é o seu, onde falam uma língua que não a sua e onde são julgados pela sua aparência física. Depois, há o episódio da “solução final” dos pintainhos, com ecos terríveis sobre o que uma raça pode fazer a outra… Não é à toa que Paul, o ajudante de Jacob, carrega uma cruz no seu tempo livre, como que ilustrando o calvário desta família ou que a plantação de ‘minari’ seja feita junto a um rio de águas cristalinas… Mas, lá está, se há dúvidas sobre se de fora poderá vir alguma ajuda para a família, elas desaparecem no seio familiar. Entre irritações, lágrimas e sorrisos, vitórias e derrotas, é no seio da família que os seus elementos se refugiam, como se dum castelo inexpugnável se tratasse. <br /> <br />Lee Isaac Chung conta-nos mais esta outra “história simples”, com uma suavidade e uma naturalidade encantadoras. Estamos longe, muito longe, do aparato tecnológico que continua a infectar uma parte substancial do actual cinema norte-americano. A matéria-prima são as pessoas, os seus sentimentos e a sua condição. Há tempo para partilharmos dos seus estados de alma e dos seus silêncios. Despido de virtuosismo visual, Chung ilustra este drama familiar, de contornos autobiográficos, com a mesma singeleza com que David Lynch filmou “A Simple Story” ou com que a chinesa Chloe Zhao pintou “Nomadland”, sem esquecer os ecos distantes de “It’s a Wonderful Life”, de Frank Capra. Rostos, olhos, emoções e muitos grandes planos exigem, natualmente, actores acima da média. Felizmente, acertou nas escolhas, em especial em Steven Yeun enquanto jacob, Will Patton no papel do “louco” Paul e na veterana Youn Yuh-jung, a adorável avozinha Soonja. Aliás, o actor que deu vida ao inesquecível Glenn, de “The Walking Dead”, é o centro emocional e dinamizador do filme, conseguindo espelhar na sua face uma dualidade digna de Jano: a ambição em alcançar o seu objectivo e o peso da responsabilidade familiar. <br /> <br />Num ano em que o cinema atravessou uma crise inaudita, é gratificante notar este “back to basics” de Hollywood, ilustrado por filmes como este ou como “Nomadlands”. Mesmo que o destino não seja a grandiosidade da sala de cinema mas antes o conforto da sala de estar, é indiscutível que filmes como estes são os que cumprem com o conceito de “cinema”.
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