É muita Salma Hayek para pouca Frida Kahlo
Ricardo Pereira
Existem personagens que de tão fortes e complexos, são garantia de uma boa história – mesmo que esta não seja lá muito bem contada. É o caso de Frida Kahlo (1907-1954), pintora mexicana que é considerada a primeira artista surrealista da América Latina. O filme de Julie Taymor, “Frida”, é seguramente uma dessas histórias que podem ser contadas sem muita profundidade ou compromisso com a verdade e que, ainda assim, dão um bom resultado final. Frida foi uma dessas personagens maiores do que a própria vida, em matéria de comportamento, sexualidade, arte, política, numa época em que tudo isso ainda não tinha virado moda. Casou-se com uma figura muito semelhante – Diego Rivera – e não raro o superou. Os dois se engajaram em todas as causas políticas de seu tempo. Apoiaram a Revolução Russa, mas deixaram o Partido Comunista depois dos expurgos e dos massacres imputados a Estaline. Rivera tornou-se famoso a ponto de ser convidado a pintar um mural para o Rockfeller Center, em Nova Iorque, pelo milionário Nelson Rockfeller. Mas os dois desentenderam-se porque o artista se recusou a apagar o rosto de Lenine na pintura (um episódio relatado com muito mais destaque em “Cradle Will Rock”, de Tim Robbins). Diego e Frida tiveram um casamento aberto e tempestuoso, com muitos amantes de ambos os lados e Frida flertando abertamente com a bissexualidade. Não há dúvida de que sua vida merece um filme, ainda mais que a história e os manuais de arte muitas vezes lhe fazem a injustiça de colocar sua pintura extremamente criativa e pessoal como um mero rodapé do mais celebrado Rivera. Tecnicamente, Frida é impecável, da trilha sonora de Elliot Goldenthal (que venceu o Óscar) à fotografia de Rodrigo Prieto, com interessantes efeitos especiais que fundem a vida e a obra da pintora. E Chabela Vargas cantando “La Llorona” diante de uma garrafa vazia de tequila é um momento especial, mas não deixa de ser um apêndice – mais ou menos como o foi Caetano Veloso cantando “Cucurucucu Paloma” em “Habla Con Ella”, de Pedro Almodóvar. Pena que ao refinamento visual e ao bom gosto plástico não corresponda um mínimo de preocupação em se investigar os sentidos mais profundos da arte e da trajectória pessoal de Frida Kahlo. Não nego as boas intenções de Julie Taymor e Salma Hayek – ao que consta, fascinada pela artista desde os 14 anos. Mas, pessoalmente, seria preferível retratar uma Frida com mais bigode, como aquela que o mexicano Paul Leduc retratou em Frida, Natureza Viva, de 1984, com Ofelia Medina no papel principal – que Julie Taymor, aliás, alegou não ter visto. Pode-se dizer que é muita Salma Hayek para pouca Frida Kahlo. O corpo nu que aparece nas telas quando a personagem Frida está mostrando uma de suas cicatrizes, é o maravilhoso corpo de Salma Hayek. Nada a ver com o corpo de quem havia passado por mais de dez cirurgias, algumas experimentais, tinha a coluna estilhaçada, um pedaço da pélvis enxertado na coluna e um pé torto. A irmã de Frida, Cristina, foi personificada pela belíssima Mia Maestro. A primeira mulher de Diego por Valeria Golino. E a anfitriã dos artistas mexicanos de então, Ashley Judd. Onde estão as mulheres dos anos trinta, redondinhas e cheia de pelos debaixo do braço?
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