Brincando de Bob Fosse
Ricardo Pereira
O psicólogo alemão Hugo Mauerhofer definiu o "estado de cinema": uma pessoa dentro de uma sala escura (fora de seu ambiente normal e vendo imagens surgirem à sua revelia e sem uma cronologia real) está num estado muitíssimo parecido com o do sonho. Esse "estado de cinema" encontra-se entre a vigília e a inconsciência: observamos a vida alheia com a segurança do anonimato. Os musicais só funcionam integralmente quando o público se entrega ao "estado de cinema". Plateias mais modernas comumente reclamam da falta de verosimilhança do género, em que uma simples frase é desculpa para um mirabolante número de canto e dança. Porém, de tempos em tempos, alardeia-se a "ressurreição" do género. Desta vez, o responsável é "Chicago", filme de Rob Marshall, grande vencedor do Óscar deste ano e baseado no espectáculo que Bob Fosse dirigiu na Broadway na década de setenta. "Chicago" conta a história de Roxie Hart (Renée Zellweger), uma dona de casa que sonha com as luzes da ribalta, e Velma Kelly (Catherine Zeta-Jones), uma estrela do showbizz. Ambas estão presas, acusadas de crimes passionais e sob os cuidados da chefe da carceragem Mama Morton (Queen Latifah) e, principalmente, do advogado Billy Flynn (Richard Gere). A questão da verosimilhança é resolvida de maneira semelhante à utilizada por Lars Von Trier em "Dancer In The Dark" (2000). Separa-se fantasia e realidade: de um lado, a triste rotina da carceragem; do outro, o alegre colorido da imaginação das personagens. Mas se "Dancer In The Dark" era um forte melodrama com contrapontos musicais, "Chicago" é uma aparentemente infindável sucessão de números que, apesar de deslumbrantes, não criam acúmulo nenhum. Na fase áurea dos musicais, os enredos eram bastante simples. Mas pelo menos eles existiam! Já em "Chicago", a história é quase que desprezada: ela existe, ela está lá, mas ninguém lhe dá muita atenção. Algo parecido acontece com Amos Hart (John C. Reilly), o único personagem em todo o filme que não está preocupado com a fama. Ele existe, ele está lá, mas ninguém lhe presta muita atenção. Se antes os números de dança estavam subordinados à história (sendo que os melhores musicais eram os que atingiam um perfeito equilíbrio entre enredo e espectáculo), agora importa apenas "deslumbrar" o público. A montagem (de Martin Walsh) chega a ser atordoante. Números musicais sucedem-se com a velocidade de um relâmpago. Mal se tem tempo de ver os pés dos dançarinos – se é que eles são mostrados. Afinal, o que é que esse filme quer revelar? Ou ele quer mais esconder? Esse jogo de prestidigitação, onde o que se exibe não é o que parece e o que se oculta nem sempre é o que se pretende, sustenta "Chicago". Enfim, enquanto "Moulin Rouge" reinventou um estilo e abriu caminho para outras produções do género, "Chicago" apenas ecoa o passado, cuja falta de renovação acabou por deixar os musicais longe das telas por décadas. Não me parece que "Chicago" tenha conseguido mudar isto.
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