Brincando de Deus
Ricardo Pereira
Mesmo quem não gosta de Jim Carrey há de admitir que o actor tem seu talento. É só imaginá-lo como estrela do cinema mudo, dirigido por um Chaplin ou um Buster Keaton. Ele é um mestre da comédia física, um careteiro dos melhores. Mas Jim Carrey não dirige os próprios filmes, como os dois génios citados acima. Ele fica à mercê dos produtores, que o experimentam nos mais variados géneros. “Bruce, O Todo Poderoso” é um filme na mesma linha de “O Mentiroso Compulsivo” (1997), ambos filmados por Tom Shadyac. Os dois são híbridos entre a comédia e o romance com pitadas de filosofia hollywoodiana, à la Frank Capra, e um ou dois toques do que Jim Carrey sabe fazer de melhor: a piada escatológica. Por ter tantas habilidades físicas, ele é o mestre da grosseria, que os irmãos Farrelly souberam explorar à exaustão em “Dumb & Dumber” e “Me, Myself & Irene” . “Bruce, O Todo-Poderoso” começa e termina com uma historinha de melosidade insuportável (Tom Shadyac não é nem primo distante de Frank Capra para conseguir algo semelhante a um “A Felicidade Não se Compra”, por exemplo), tendo como recheio algumas boas gags e excelentes efeitos especiais, que começam a partir do momento em que Deus resolve contemplar uma das suas ovelhas que mais reclama da vida, o repórter Bruce Nolan (Jim Carrey), com seus poderes divinos. Costurando este roteiro bem mais ou menos estão Morgan Freeman e Jennifer Aniston, adequados como Deus e a namorada paciente de Bruce. Ambos lutam para suportar o egocêntrico Bruce, que acha que merece o mundo e nada menos. E, quando ele não consegue um almejado cargo de âncora de TV e exagera nas blasfémias, Deus resolve chamá-lo para uma conversa séria. Se Deus não abençoou o "Bruce, O Todo Poderoso" o bastante para transformá-lo num filme tragável, se lhe deu um realizador como Tom Shadyac, capaz de passar cem minutos sem produzir um plano memorável – aliás, pelo jeito, é assim que ele atravessará a sua carreira – deu-lhe em troca um comediante inspirado, na pessoa de Jim Carrey. O filme não é de Deus, é de Jim, que cada vez mais parece usar confortavelmente a aparência do homem comum para produzir humor. E, de facto, quando menos se espera, Jim consegue efeitos cómicos inesperados que, nitidamente, não vêm do roteiro, mas dele mesmo. A ideia de Carrey como Deus tem implicações teológicas que os roteiristas podem não ter considerado totalmente. O todo poderoso infantil de Carrey é egoísta, caprichoso e míope, e ele se deleita com piadas cruéis. Pode soar como uma ideia doce laçar a lua e trazê-la um pouco mais perto de sua janela para aumentar o clima romântico entre Bruce e sua namorada, mas o filme é esperto o suficiente para reconhecer que as implicações meteorológicas de tal manipulação poderiam ser catastróficas. Brincar de Deus é uma coisa enquanto ser Deus é outra.
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