A linha entre loucura e genialidade
Pedro Brás Marques
Nem sempre é fácil traçar a linha que separa a genialidade da loucura. Porque não se sabe onde começa uma e acaba. E mais complicado se torna quando é uma a alimentar a outra, num exercício incestuoso de criatividade. Van Gogh é disso o exemplo perfeito. <br />“À Porta da Eternidade” retrata os últimos anos da vida do pintor Vincent Van Gogh, da sua busca pela “luz que ninguém ainda viu”, a sua vontade não de vender quadros mas de “fazer com que as pessoas se sintam vivas”. O pintor descurava a alimentação, o vestuário e até as suas condições de vida, sempre em busca dessa perfeição inalcançável para todos – menos para ele. As suas explosões criativas traduziam-se numa pintura por impulso, “de uma pincelada só”, para que a emoção fluísse de si e da paleta de cores, fundindo-se na tela.<br /><br />Sobrevivia à custa do irmão Theo e apesar de conviver com pintores como Gauguin ou Cézanne, a verdade é que nunca se deixou influenciar, fiel ao seu espírito e à sua consciência. O passado católico era um das suas tormentas, porque Van Gogh achava que estava a servir a Deus, a ser um executante da Sua obra, pois foi “Deus quem me deu este dom”. O seu mundo, era só isso, um mundo só seu, que naturalmente chocava com o convencionado e normalizado em que vivemos. A loucura está do lado de quem não cede a sua liberdade criativa ou do lado de quem alinha obedientemente no rebanho social? <br /><br />Não é fácil filmar ou interpretar uma personagem atormentada e perturbada como o autor de “A Noite Estrelada” e de “Os Girassóis”. Julian Schnabel, que já assinara o biopic de outro artista, o norte-americano Jean-Michel Basquiat, recorre brilhantemente a vários expedientes para levar o espectador a entrar na mente do pintor. Desde logo, o mais óbvio, o recurso ao plano subjectivo, nomeadamente quando Van Gogh está mais perturbado. Depois, usando o mesmo recurso, coloca personagens a falarem directamente para os olhos de Van Gogh… que são os nossos. Depois, usa uma paleta de tons que mimetiza os do mestre holandês em muitas das suas obras. <br /><br />Tudo isto ajuda a homogeneizar a obra mas nada funcionaria se o actor que interpretasse Van Gogh não estivesse, ele próprio, muito próximo da perfeição. Felizmente, Willem Dafoe encarnou com profunda mestria a personalidade conturbada do autor de “Quarto em Arles” e “Campo de Trigo com Corvos”, fazendo esquecer as composições sobre a mesma personagens feitas por Kirk Douglas em “A Vida Apaixonada de Van Gogh” de Vincent Minelli e de Tim Roth em “Vincent & Theo” de Robert Altman, apenas se comparando à de Jacques Dutronc em "Van Gogh” de Maurice Pialat. Veneza reconheceu-o merecidamente como “Melhor Actor” o que deveria repetir-se nos Óscares, mas para que tal acontecesse era precisa uma certa dose de “loucura”… <br /><br />Normalmente, os biopics procuram centrar-se na reprodução mais fiel possível da vida do retratado. “Às portas da Eternidade” vai mais longe, ao provocar o espectador a questionar sobre os limites da sua própria vivência, do verdadeiro sentido de estar vivo, do alcance da palavra liberdade. E é isso que faz dele um grande filme.
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