Entrada de leão, saída de gato...
Pedro Brás Marques
Há histórias reais que ultrapassam qualquer criatividade ficcionada. A de Saroo é uma delas. Vivia nas profundezas da India, numa lugarejo cujo nome ainda nem sequer havia decorado. Acompanhava o irmão em pequenas habilidades de legalidade muito duvidosa, mas era a forma que encontravam para arranjar algum sustento para a paupérrima família que apesar dessa lacuna material era rica em amor e carinho. <br />Mas, um dia, o Destino bate a porta. Saroo espera pelo irmão na estação de caminho-de-ferro local. Por comodidade, entra numa das carruagens da composição e vê-se a atravessar metade do subcontinente indiano, até Calcutá. Uma vez ali, Saroo confronta-se com perigos que jamais sonhara: pedófilos, traficantes de crianças e até a própria polícia. Só a sua sagacidade e força de vontade conseguem fazer com que escape, até ser acolhido num orfanato que, depois de procurar infrutiferamente a mãe, acaba por o dar em adopção a uma família australiana. Ali, Saroo cresce rodeado de todos os luxos. Mas, já adulto e com vinte e cinco anos, sente necessidade de encontrar as suas origens, a mãe e o irmão. Sem grandes referências, acaba por encontrar ajuda no…Google Earth! <br />O filme divide-se em duas partes quase autónomas entre si e esse parece ser o grande problema de “Lion”. É que, na primeira, somos companheiros de fuga do pequeno Saroo, enquanto ele se esquiva aos perigos da cidade. O filme decorre vivo e coerente, em que o desprotegido protagonista, um maltrapilho aparentemente frágil mas munido de argúcia e perspicácia, encanta o espectador, muito graças à extraordinária composição que dele faz o jovem actor Sunny Pawar. Mas, a meio da viagem cinematográfica, fomos obrigados a “mudar de comboio” e a coisa quase descarrila. Saroo é, agora, um jovem moderno e urbano, completamente inserido na sociedade, estudando na universidade e namorando com uma rapariga australiana. Apesar de saber que a sua origem era indiana, a verdade é que num primeiro momento não parece importar-se. Mas eis que, de repente, a visão dum doce indiano lhe faz disparar não só a memória como o desejo obsessivo de querer conhecer as suas origens. E de um jovem alegre e promissor, torna-se solitário e amargo. O desnorte da personagem é acompanhado pelo do realizador que se vê em trabalhos para segurar a coerência dramática do filme. Tanto assim é que não hesita em ir buscar alguns flashbacks da vida do jovem Saroo para que “Lion” não escorregue para uma esquizofrenia fatal. <br />Fica uma grande história. Uma história com a tenacidade, a perseverança e a força de vontade dum miúdo, obrigado a crescer antes do tempo, recompensado com uma vida confortável e por uma família de acolhimento extraordinária. Mas não era a dele. E isso fez toda a diferença. <br />É o primeiro filme de Garth Davis e talvez isso explique esta “falta de mão” na transição entre os dois momentos temporais da vida da personagem. Porque, na primeira parte, o seu trabalho é irrepreensível. Como também o é o pequeno-grande papel de Nicole Kidman, enquanto mãe adoptiva de Saroo, generosa, no amor e na dor, para com os filhos, apesar da enorme diferença comportamental existente entre eles. Dav Patel continua a sua ascensão, sempre seguro e com uma entrega que chega sempre ao espectador, muito por via do seu hipnotizante olhar. Apesar de só aparecer em metade do filme, conseguiu ser candidato a Óscar do Melhor Actor Principal, o que é bem ilustrativo da sua destreza interpretativa. Portanto, não se ouviu um rugido de leão, antes o ronronar dum gato caseiro e acomodado.
Continuar a ler