Um filme pedagógico, informativo, que toda a gente deveria ver
Ivo Miguel Barroso Pêgo
<p>Um filme pedagógico, informativo, que toda a gente deveria ver, sobre o direito a um julgamento justo e imparcial, mesmo em tempo de guerra; e como esse direito é insuspensível, mesmo em presumido "estado de excepção" (o que até só muito tenuemente era o caso, uma vez que a guerra estava praticamente ganha).<br />(Ao contrário do colega Pedro Vardasca, não creio nada que a questão da pena de morte seja tocada. O filme não é um libelo - pelo menos, abertamente - contra a pena de morte; o facto de se demonstrar a crueldade dessa pena decorre da sua natureza intrínseca).<br />O que está em causa não é o direito à vida, mas o direito a um julgamento imparcial, a instituição do tribunal do júri (tipicamente norte-americana; aqui, o filme é "pro domo"); a um processo justo ("due process of law") e o direito a um recurso efectivo.<br />(Um filme que o Presidente Obama deveria ver com muito cuidado, atentas as suas declarações sobre o assassínio de Bin Laden).<br />Demonstra também muito bem a fragilidade de tribunais especiais militares com competência criminal; ainda para mais para julgar civis.<br /><br />O filme explica bastante bem as questões filosóficas, éticas e jurídicas (nesse sentido, é muito mais rico do que, por exemplo, o filme "Homens do Presidente", de Redford e Dustin Hoffmann sobre o caso Watergate): <br />Tem a frieza de explicar ambas as visões (embora a narração omnisciente seja apenas a do lado da defesa) e a convicção com que a visão oposta, da "raison d'État", é defendida por muitos, desde logo por Stanton; e como a guerra suspende o Direito ("inter armas silent leges", como o Procurador cita).<br /><br />O filme demonstra como o poder executivo e a política não se devem imiscuir na justiça (no caso, para além da nomeação dos juízes do tribunal marcial pelo Secretário de Estado da Guerra, Stanton; a manipulação de testemunhas; os direitos dos reclusos; as arbitrariedades em relação à inquirição de testemunhas e à "escolha" dos arguidos (Mary Surratt, não responsável, mas muito conhecida pela opinião pública, a ser julgada (isto em detrimento de duas testemunhas da Acusação, que mudaram de lado, e que praticaram actos criminosos, mas que eram pouco conhecidos); a mutilação das testemunhas de defesa (aspecto pouco explorado); ainda assim, depois de o veredicto ser mais favorável a Mary Surratt, a interferência no sentido da pena máxima; e nova intervenção, desta vez do Presidente, revogando um "writ" de um juiz, que pretendia um novo julgamento civil, por um tribunal do júri). <br />O filme pugna pela supremacia da Constituição e pela judicialização da Justiça (a referência inicial ao regresso da Inquisição ou pactuar com ela é muito bem escolhido).<br />Contra as pré-compreensões clausuladas por sentimentos humanos, como a vingança, quer de um lado quer de outro, em tempos de guerra (pois o filme começa com a vingança de um grupo de sulistas, encabeçados pelo actor John Wilkes Booth, contra membros do Executivo).<br /><br />O filme demonstra como o Prof. Jorge Reis Novais tem razão: os direitos fundamentais (de liberdade, a meu ver) são trunfos contra a maioria.<br /><br />Que o Direito renasce, a cada violação (Ihering); e conduz a alterações do Direito positivo. <br />Daí que, após esta situação, de a Justiça "bater no fundo", o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido, como direito implícito o direito de um julgamento imparcial, pelo tribunal do júri<br /><br />Um filme bom.<br /><br />Realização: muito bem realizado por Robert Redford.<br /><br />Actores: <br />principais: não achei brilhante o actor que faz de advogado; mas bem, até bastante bem, a que faz de Marry Surrat (Robin Wright)<br />O melhor actor secundário é o que faz de Procurador da Acusação; curvado, gordinho; faz perfeitamente credível e convincente.<br />Também em bom plano, um Stanton (Sec. de Estado da Defesa), protagonizado por um Kevin Kline irreconhecível; e também Justin Long.<br /><br />O filme demonstra também a fragilidade, "de jure condendo", de aspectos do Direito Penal anglo-saxónico substantivo; designadamente, da incriminação da conspiração, no Direito Penal anglo-saxónico (para mais desenvolvimentos, v. Ivo Miguel Barroso, O acordo com vista à prática de genocídio, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, V, Almedina, Coimbra, 2003).<br />Mas há uma falha imperdoável no filme: deixar no ar factos mais que estudados e conhecidos: por ex., a ausência de responsabilidade de Mary Surrat na conspiração para matar o Presidente (ora, existe ausência de criminalização da cumplicidade por omissão); mas a sua participação na conspiração para raptar o Presidente;<br />a responsabilidade de John Surrat; participou na conspiração, foi cúmplice da preparação, mas desistiu; essa desistência levaria à sua não punição na conspiração para matar o Presidente.<br /><br /><br />Em termos estéticos: <br />O filme começa muito bem, a narrar rapidamente os factos da noite de 14 de Abril de 1865, dos assassínios do Presidente Lincoln, do Secretário de Estado e da tentativa de assassínio do Vice-Presidente.<br />Depois, a partir daí o filme começa com um rol de cenas pouco conseguidas, muito descritivas (embora obedecendo à verdade histórica, é certo), desde a 1.ª visita do Advogado à prisão. <br />O filme tem muitos altos e baixos, em termos cénicos (embora com imagem e realização impecáveis). <br />As fragilidades do filme residem, principalmente - descontada a fase de acção inicial, muito boa - em ser muito descritivo:<br />i) em perder-se em factos acessórios; contei, pelo menos, cerca de cinco ou seis episódios que só desviam as atenções da História principal. Ora, a obra deve ser simples e una, formando um todo (ARISTÓTELES, Poética, VI-VII 1450 b ss.; HORÁCIO, Arte poética, versos 1-37); falta unidade ao filme; HORÁCIO censura tudo o que não tenha íntima conexão com o tema poético, tais como digressões extemporâneas (HORÁCIO, Arte poética, introdução, tradução e comentário de R. M. ROSADO FERNANDES, 3.ª ed., Inquérito, Lisboa, pg. 52 (nota do Tradutor); (ARISTÓTELES, Poética, cap. VIII, e HORÁCIO, Arte Poética, versos 131-152) consideram ser de seguir, de preferência, o exemplo de HOMERO, que reduz as suas obras a uma acção una, sem pretender obter essa unidade pela apresentação monótona de uma só personagem (HORÁCIO, Arte poética, introdução, tradução e comentário de R. M. ROSADO FERNANDES, 3.ª ed., Inquérito, Lisboa, pg. 75 (nota do Tradutor)).<br />ii) o filme espalha-se a dizer coisas que não vêm a propósito (cfr. HORÁCIO, Arte poética, introdução, tradução e comentário de R. M. ROSADO FERNANDES, 3.ª ed., Inquérito, Lisboa, pg. 58 (nota do Tradutor), em atirar factos que, depois, não aproveita (por ex., a alegada vingança contra o Advogado, que não concretiza; quem atirou as pedras à casa da filha, Anna Surrat).<br />iii) no seu excessivo realismo. Falta-lhe, como hei-de explicar, alguma ousadia, para ir para além dos factos. <br />iv) Em cenas muito pouco conseguidas, devido aos tais factos acessórios. Mas também conta com boas cenas: a parte inicial é excelente; a cena em que aparece uma feira de venda de objectos de Lincoln; a cena do enforcamento também.<br /><br />Por isso, daria nota 15 ao argumento ("screenplay").<br /><br />Ou seja, o filme fica aquém da matéria-prima.<br />Com muito menos, "Uma questão de honra" deu um filme melhor do que este.<br /><br />Daria nota de 17, pela intenção pedagógica (e pela minha pré-compreensão jurídica coincidente).</p>
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