O vírus da dúvida
Pedro Brás Marques
O casamento é uma coisa viva. Tal como um ser vivo, precisa de cuidado, de alimento e de protecção face a ameaças. Mas, por vezes, um dos elementos baixa a guarda ou não foi completamente sincero com o outro e o vírus da dúvida instala-se. <br />Foi isso que aconteceu entre Geoff e Kate, um casal a viver calmamente numa zona rural. Estão os dois sozinhos, nunca tiveram filhos e dedicam-se à leitura e outras actividades lúdicas. O dia de celebração do seu 45º aniversário matrimonial aproxima-se e Geoff recebe uma carta enviada pelas autoridades suíças. Pelos vistos, havia sido descoberto nos Alpes o cadáver duma mulher cujo único contacto que tinha era o seu. Ele acaba por revelar a Kate que se tratava de Katya, uma antiga namorada, efectivamente desaparecida numa queda nas montanhas, meio século antes, e cujo corpo nunca fora encontrado. Kate desconhecia em absoluto esta passagem da vida do marido e questiona-o, mas ele desvaloriza a situação. Só que ela nota perturbação nele e na relação. A intimidade não é a mesma, as respostas são escassas e ela acaba por descobrir que a antiga namorada até estava grávida quando morreu… O vírus da dúvida infecta Kate e ela não vislumbra um qualquer antídoto. E a festa de aniversário aproxima-se, estando os amigos todos convidados… <br />Por outras palavras, o desafio lançado por “45 anos” é o de questionar se algo construído e solidificado ao longo de quase meio-século resiste, ou não, a algo semelhante a uma traição, uma vez que o facto ocorreu antes dos dois se conhecerem. Mas, lá está, o vírus da dúvida instala-se: será que, se ela tivesse sobrevivido, nos teríamos casado? Será que vivi todo este tempo assente numa mentira? Só houve Kate por não haver Katya? Sou uma segunda escolha? Foram 45 anos de felicidade ou 45 anos de mentira?... <br />Não é fácil interpretar personagens com esta dimensão e conflitos interiores, como não é simples contar a história de forma sóbria. Mas actores e realizador conseguem-no superiormente. Quer Tom Courtney quer Charoltte Rampling, especialmente esta, estão formidáveis na sua composição deste casal idoso, mas ainda cheio de vida. A actriz inglesa oferece todo o espectro possível de composição dramática, oscilando entre a alegria e tristeza, entre certezas e dúvidas. Toda esta miríade de emoções é sublinhada por um realização inteligente que vai deixando, aqui e ali, pequenas sugestões visuais que elevam a história: a “pura” paisagem campestre; o omnipresente cão, eterno símbolo da fidelidade; a repetida visualização de relógios, assinalando a inelutável passagem do tempo; e até a banda sonora, com um surpreendentemente irónico “Smoke gets into your eyes”, dos The Platters, a ser cantado por toda a gente… Por outro lado, Andrew Haigh optou, e bem, por um ritmo lento, à velocidade da vida das personagens, dando tempo, também, para que se possa acompanhar devidamente as nuances evolutivas dos sentimentos das personagens. <br />Um alinhamento perfeito que resultou num grande filme.
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