Uma miúda com potencial
Fernando Oliveira
<p>É notável que “Promising youg woman” de Emerald Fennell é uma brutal critica à sociedade sexista e machista desculpada pela “moral” e pelos “bons costumes”, exposta na terrível e brutal sentença “ela pôs-se a jeito” que muitas vezes é utilizada quando uma mulher é violentada e violada por um ou mais homens. E a realizadora e argumentista fá-lo, fazendo uma espécie de ultrapassagem à ideia construída pela visão masculina do mundo: demonstrando (esta palavra parece-me ser a mais correcta) que quando isto acontece nada diz sobre a mulher, diz tudo sobre este tipo de homens: seres incapazes de controlarem os seus instintos mais bestiais, animais irracionais, portanto. Fá-lo, sublinhando o grotesco do comportamento e ideias masculinas sobre as mulheres, sem poupar também a forma como as “outras” mulheres são capazes de ser tão cruéis quanto eles no seu julgamento: o filme não poupa ninguém, apenas está do lado das vitimas, deplora a forma como esta misoginia (cada vez mais presente na nossa sociedade, quando esperaríamos que o Mundo evoluísse em sentido contrário) destrói sonhos e vidas. É esta razia que faz a diferença nesta história tantas vezes contada em Cinema.</p><p> </p><p>Há muitas coisa boas no filme: o argumento que vai tangendo vários géneros, mesmo a comédia, mas é magnifica a forma como sabe recusar a memória do filme negro, a ideia da femme fatale; a espantosa interpretação de Carey Mulligan, uma “vertigem” que é centro para onde tende todo o filme; como isto provoca um estremecimento, um desconforto em nós (lembrei-me de Una, a personagem interpretada por Rooney Mara, no filme com o mesmo nome, que nos provocava o mesmo incómodo). Há também algumas coisas menos boas: os maneirismos da realização que por vezes exagera no que quer sublinhar; e o final é pouco credível. Mas tudo isto é diluído na tremenda força da denúncia que vem do filme.</p><p>Cassandra era uma brilhante estudante de Medicina, desistiu depois da sua melhor amiga ter sido violada por um colega enquanto muitos outros aplaudiam, a amiga morreu, incapaz de lidar com o que aconteceu; agora, com trinta anos, Cassandra é uma mulher destroçada por dentro, para quem a vida “parou” (ainda vive com os pais, trabalha num café de uma amiga), ficou presa naquele acontecimento, carrega a culpa não ter acompanhado a amiga a essa festa, e que apenas a vingança sobre os homens alenta. Uma vez por semana, veste uma roupa provocante e finge estar bêbada em bares, espera que um homem a queira levar a casa, e quando eles tentam algo que nunca foi insinuado muito menos pedido, prega-lhes um valente susto. No café reencontra um antigo colega de Faculdade, sabe que o homem que violou a amiga vai casar, pensa na vingança; a sua estória evolui, apaixona-se, mas a vida volta a ser cruel, a desilusão fá-la dar o salto para a tragédia. E é impressionante como Carey Mulligan representa estas guinadas no comportamento de Cassandra, a forma quase “fria” como estas diferenças vão alterando, ou sublinhando, a instabilidade da personagem, sem tirarem um pingo de “peso” dramático ao que ela faz.</p><p> <br />Um filme muito bom, violentíssimo, com uma interpretação que é um “buraco negro” de emoções. <br />(em "oceuoinfernoeodesejo.blogspot.pt")</p>
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