Ser pleno, ser livre!
Pedro Brás Marques
É o grande desafio de todo o ser humano: alcançar a sua plenitude existencial. Não ter medo de se afirmar, de defender abertamente o que acredita, não reprimir sentimentos para que, um dia, quando a hora final se aproximar, poder dizer serenamente: «vive sempre de acordo com a minha mais íntima natureza». Infelizmente, é algo que nem todos podem dizer. <br /> <br />“Moonlight” conta a história de Chiron em três etapas da sua vida: enquanto criança, como adolescente e, finalmente, em adulto. Tal como a Esfinge desafiou Édipo com uma charada sobre as etapas da vida, também este miúdo negro, pobre e introvertido tem um enorme problema que a Vida lhe apresentou. Não conhece o pai e, em casa, a mãe pouco lhe liga no tempo que sobra entre a prostituição e o consumo de droga. Na escola relaciona-se com poucos miúdos, a maior parte goza com ele e perseguem-no. Numa destas caçadas, Chiron esconde-se num apartamento do líder de venda de droga do bairro que p descobre, acabando por se tornar uma figura paternal de referência. Anos depois, no liceu, o agora ‘teenager’ continua fechado sobre si mesmo, mas a vontade de se assumir como é começa a desabrochar. Aceita o que sente por outro rapaz e já não tem paciência para aturar o gozo dos demais. Já adulto, vemo-lo como o rei do bairro, comandado o comércio de droga local, mas há coisas que nem o passar dos anos consegue mudar… <br /> <br />Esta é uma história sobre crescimento, sobre afirmação, sobre aceitação, sobre a vontade de ser reconhecido como realmente se é. Porque é certo e sabido que quem não encaixar nos cânones sociais, arrisca-se a ser ostracizado e perseguido. Chiron sabe disso, até porque vive inserido na cultura negra da droga e do rap, onde reinam a intolerância, o machismo e a homofobia. Mas ele é diferente e sabe-o. Esta luta interior, esta repressão dos seus sentimentos e da sua sexualidade, causa-lhe evidente infelicidade, o que é visível em qualquer dos três estágios da sua vida a que assistimos. E isto acontece, evidentemente, porque Chiron não recebe amor e, pior, não consegue dar o que tem. <br /> <br />A realização de Barry Jenkins é extraordinária. Este é um filme intenso, de rostos duros, marcados pela dor. Mas no meio de toda esta escuridão, Jenkins conseguiu ir buscar luz, muita luz. Como quando o dealer Juan leva o pequeno Chiron ao mar e o ensina a nadar, qual metafórico baptismo de renascimento para a vida. Ou quando Chiron e Kevin se beijam e tocam pela primeira vez, na praia, os dois banhados por um foco de luz rodeado de profunda escuridão… Mas Barry Jenkins teve ainda outro mérito. Para contar a história ao longo do tempo, não precisou de dez ou vinte anos sempre com os mesmos actores, como aconteceu com Richard Linklater e o seu “Boyhood”. Numa admirável direcção de actores, conseguiu que a essência das personagens, em especial Chron e Kevin, fluísse pelo tempo narrativo como se elas e os actores fossem unos. E não se pode esquecer a fotografia, como por exemplo o belíssimo plano inicial, demorado e circular, como que a situar o espectador naquele mundo, o local da acção. Depois, há as maravilhosas cenas no mar e ao luar, tudo filmado com uma crueza bela e real. Estamos, felizmente, muito longe dos habituais tons escuros, cores saturadas e contrastes artificiais, anunciando uma sofisticação falsa e oca típica da publicidade e que têm sido a imagem de marca de muito cinema contemporâneo americano. <br /> <br />Se, na noite de atribuição dos Óscares, levar para casa todos para os quais foi nomeado, só ficará surpreendido quem ainda não tiver visto “Moonlight”.
Continuar a ler