Bom Deus!
Pedro Brás Marques
Nos tempos que correm, brincar com a religião é uma actividade arriscada - salvo se for com a Católica, claro. Este “Deus Existe e Vive em Bruxelas”, ou “Le tout nouveau testament” no original, é uma proposta franco-belga inteligente e bem-humorada sobre o Destino e sobre as grandes directivas do catolicismo. <br /> <br />Efectivamente, Deus vive em Bruxelas, num apartamento, de onde comanda o Mundo. É casado e tem dois filhos, o sobejamente conhecido “J.C.” e “Ea”, uma menina cheia de vida e de certezas. Mas este Deus, que é o Deus católico, é um sujeito mal apresentado e com péssimos fígados. Anda sempre em trajes menores, sujos, e trata os elementos da família como se fossem seus criados. Mas Ea não está com paciência para o bruto do pai, pelo que decide vingar-se. Acede ao computador dele, envia um SMS para todos os seres humanos revelando quanto tempo de vida lhes falta e foge do apartamento. Antes, escolhe seis que serão os seus apóstolos e que narrarão este “tout nouveau testament”, através do relato da sua experiência de vida e do impacto da revelação do prazo vital. <br /> <br />E é precisamente aqui que está a chave de todo o filme. É que cada um guarda dentro de si um verdadeiro universo, onde as ambições, as conquistas, os medos, as alegrias, os recalcamentos, enfim, tudo o que constitui “a vida” está encerrado. A maior parte das vezes, chega-se ao último suspiro sem se realizar esses desejos mais profundos, mas a perspectiva de se saber a hora final tudo muda, pois há urgência em realizar tudo antes que tal seja impossível. Nesse sentido, as seis histórias acabam por ser mais motivadoras e positivas do que à primeira vista se pensaria, com uma previsível depressão colectiva. Por isso eles são “apóstolos” deste Novo Testamento, que acaba por ser uma homenagem à vida e ao quão importante é extrairmos o sentido que dela queremos. Porque até os deuses querem ser felizes durante a sua existência… <br /> <br />Deus é interpretado por um impagável Benoît Poelvoorde, um actor belga que tem uma daquelas caras que só por si já tem piada, especialmente nos momentos de fúria divina, em que proporciona alguns dos melhores gags do filme e nem todos são burlesco. Depois há Catherine Deneuve apaixonada por um gorila e François Damiens no papel dum assassino profissional perdido de amores por uma mulher sem um braço… Mas o principal aplauso vai para Pili Groyne, no papel de Ea (quase Eva…), uma menina determinada e confiante, que põe em marcha toda a trama. <br /> <br />Na realização, o belga Jaco Van Dormael parece fascinado, e ainda bem, pela estética dos filmes de Wes Anderson. Além da voz do narrador, Ea neste caso, usa e abusa de planos cuidadosamente simétricos, recorre a maquetas para explicar certos contextos e usa uma decoração de interiores marcadamente homogénea, no caso, algo entre o antediante mobiliário de fórmica dos anos 70 e a estética kitsch rural portuguesa, com imagens do “Corpo de Deus” e de “A Última Ceia”. Não por acaso, também se ouve a guitarra de Carlos Paredes… Enfim, uma amálgama de referências ao realizador de “Grand Budapest Hotel” que resulta. Graças a Deus!
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