A luz na escuridão
Pedro Brás Marques
Já muito se escreveu e filmou sobre um dos mais hediondos crimes da História da Humanidade, o Holocausto. “O Filho de Saul” não é apenas mais um. Passa-se em 1944, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau e tem como protagonista um “sonderkommando”, um judeu encarregado de dar destino aos cadáveres dos seus congéneres depois de serem gaseados. <br />Para Saul, a função de conduzir judeus para o que pensam ser um chuveiro, recolher as suas roupas e pertences, carregar e transportar os corpos mortos, ainda quentes, são as estações dum calvário do qual o melhor é abstrair-se, tal o absurdo e a ignomínia do que presencia. Um dia, durante mais um carregamento de cadáveres, Saul apercebeu-se que um miúdo conseguiu sobreviver ao gás venenoso. Leva-o para a enfermaria, apenas para assistir à sua imediata asfixia às mãos dum médico nazi. A partir dali, o “sonderkommando” só tem um objectivo: proporcionar àquela criança um enterro religioso e digno, em vez de ser levado para o crematório após autópsia. Para tal, vai pedir ajuda aos companheiros de infortúnio, invocando o facto de o miúdo ser seu filho… <br />Seria mesmo seu filho? Sinceramente, isso pouco importa. O relevante é que, no meio daquele horror, Saul encontrou um propósito e, para tal, moveu todas as montanhas que encontrou para o alcançar. O seu rosto é apático, submisso, a face dum robot que vivia no estrito cumprimento das regras dos oficiais nazis, pois “os sonders executam as suas horrendas tarefas com a mais ignara indiferença”, como referia Szmul, o “sonderkommando” do belíssimo livro de Martin Amis “A Zona de Interesse” que aborda esta temática, mas vista do lado dos responsáveis pelo campo. Mas Saul viu naquele menino um salvador para a sua agonia. Sabia que iria morrer, mais tarde ou mais cedo, porque era o que acontecia regularmente aos “sonderkommandos”. Daí que tenha escolhido aquele caminho, provando que mesmo em situações extremas o ser humano consegue encontrar alguma luz, alguma orientação que o liberte da negação total e lhe permita esquecer-se do fim absoluto. Enterrando a criança pelo rito judeu, Saul abriria as portas do Paraíso, a ela mas, também, a ele. Como tudo está invertido num campo de extermínio que é um local de sementeira de morte, de negação da vida, de exaltação do absurdo, também esta não é a história dum Filho moribundo que pede ajuda ao Pai, é a de um pai que vê no filho a ajuda que precisa. Daí que, no final, a visão duma criança a correr, livre, numa floresta (com todo o simbolismo inerente) faça mudar a imutável expressão facial de Saul e permita, pela primeira vez, vermos o seu sorriso… <br />László Nemes, o realizador húngaro que dirigiu este “O Filho de Saul”, não tem ainda quarenta anos mas teve a capacidade de construir uma história tão dramática, como esta, sem entrar em julgamentos e moralismos. Esses ficam para o espectador. De igual forma teve a dignidade de não mostrar ostensivamente os cadáveres empilhados ou o queimar dos corpos. Quando não havia alternativa, optou por os deixar em segundo plano, desfocados, ou mostrando apenas um ou outro membro do corpo, possibilitando ao poder da sugestão fazer o resto. Até porque o objectivo do filme não era esse, mas antes ver como se pode salvar uma alma daquele Inferno. Optando brilhantemente por acompanhar Saul sempre de muito perto, como se fossemos um seu gémeo siamês, Laszlo Nemes como que integra o espectador na acção, amplificando naturalmente o horror de toda aquela situação. O papel principal foi entregue a Géza Röhrig, um poeta e actor húngaro e também judeu, qualidade que, sem dúvida, influenciou a composição de Saul. <br />O filme venceu Cannes, o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro e mais uma quantidade enorme de prémios. E merece-os, sem dúvida alguma, ficando a ombrear entre os melhores filmes já feitos sobre o Holocausto. Porque o horror é sempre muito maior quando se foca num drama pessoal do que numa tragédia colectiva.
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