Entre a comédia e o drama, entre o masculino e o feminino
Rita Almeida (http://cinerama.blogs.sapo.pt/)
A premissa de "Transamerica" é antiga: um pai e um filho numa "road trip" que reforça a ligação entre ambos. Mas o argumentista-realizador Duncan Tucker, na sua estreia nas longas-metragens, marca a diferença com um pai que sofre disforia de género, ou seja, é transsexual. Bree (Felicity Huffman) - anteriormente conhecida por Stanley - vive no sul da Califórnia e está a uma semana de fazer a operação que finalizará o processo para se tornar mulher. Um telefonema de Nova Iorque informa-a de que Toby (Kevin Zegers), o filho incógnito de Stanley agora com dezassete anos, se encontra detido por actos de delinquência. A psicóloga de Bree, Margaret (Elizabeth Peña), recusa-se a assinar a autorização para a operação enquanto Bree não resolver este assunto do seu passado. Por isso, ocultando a sua identidade sob a capa de uma organização religiosa, Bree vai pagar a fiança de Toby. E assim tem início a sua viagem através da América, ambos em busca do seu sonho: Bree da sua operação, Toby da sua carreira no cinema pornográfico.<BR/><BR/>Bree vive para o dia em que se tornará totalmente ela, mas é o processo gradual de se afirmar perante Toby que, em última instância, será a afirmação perante si própria. A tensão desta viagem reside sobretudo no facto de Bree se comportar instintivamente de uma forma paternal sem, no entanto, querer revelar a sua paternidade. Quando Bree se confronta com os seus pais, e especialmente uma mãe (Fionnula Flanagan) inconformada com o desaparecimento do seu filho Stanley, dá-se uma mudança de papéis, e é Toby que assume o papel protector face a Bree.<BR/><BR/>Tucker teve a ideia para este filme pela amizade que estabeleceu com uma mulher e que só mais tarde veio a descobrir ser transsexual. Optando por evitar os assuntos sociais mais polémicos, deu maior relevância ao lado humano. "Transamerica" é um filme que se ri de si mesmo, mas que, ao mesmo tempo, enfrenta com força uma verdade que magoa, mas cujo confronto conduz a melhores qualidade humanas. Mas a atitude global é tão positiva que nunca somos levados ao sentimentalismo. Como a personagem de Bree, "Transamerica" não é exactamente uma comédia nem exactamente um drama, mas um pouco de ambos. Um balanço equilibrado entre seriedade e humor, com a transsexualidade como pano de fundo.<BR/><BR/>Apesar de ser um projecto anterior, o papel de Felicity Huffman (apoiado pelo produtor e marido William H. Macy) acaba por estar altamente potenciado pela projecção de Huffman na série "Desperate Housewives". É a sinceridade da entrega de Huffman que impede que este filme seja um sermão sobre a tolerância ou sobre os valores conservadores da família tradicional (sim, porque, apesar de tudo, Bree é também ela conservadora). O seu poder de transformação, que passou também por técnicas vocais que lhe permitiram baixar o registo da sua voz, fez dela uma mulher que se veste cuidadosamente, mas que se move com rigidez, tensão e incerteza, como se não estivesse ainda habituada ao corpo pelo qual tanto lutou.<BR/><BR/>A opção de uma mulher para fazer o papel de um homem que se quer tornar uma mulher não é chocante se pensarmos que essa mulher é de facto quem ele já se sente e quem ele quer ser. Por isso é tão marcante a cena em que Bree coloca um dedo num disco de vinil para ouvir a voz da cantora ficar grave como a de um homem.<BR/><BR/>Não, o mundo não é junto. Não, não nascemos todos iguais e com iguais oportunidades. Não, não há soluções fáceis. Nota: 4/5.
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