Eu, tu, nós...
Pedro Brás Marques
Um filme duro. Um soco tremendo na nossa apatia cúmplice perante a máquina cinzenta e impessoal do Estado. Um filme que devia ser de visionamento obrigatório para qualquer governante ou aspirante ao cargo. Daniel Blake é carpinteiro. Já tem alguma idade, mas ainda está completamente apto para trabalhar. Encontra-se viúvo, sem filhos e vive sozinho em Newcastle. Infelizmente para ele, sofreu um ataque cardíaco que o impede de retomar o trabalho. Para usufruir de benefícios sociais tem de se dirigir ao equivalente inglês da nossa Segurança Social. Só que tudo funciona através de “call-centers” e de formulários online. E Daniel nunca tocou num computador… Pior, se não responder da forma que os seus interlocutores estão à espera, penalizam-no retirando parte do subsídio. Ninguém o ajuda, o tempo vai passando e ele desespera… Numa das estações desse calvário, Daniel apercebe-se duma família igualmente em dificuldades. Uma mulher com cerca de trinta anos, com dois filhos, não tem dinheiro nem condições para viver. A partir daquele momento, o carpinteiro desdobra-se. Por um lado, continua o seu martírio junto da Segurança Social, por outro, dedica-se a ajudar os membros desta família, reparando a casa onde sobrevivem, comprando-lhes alguma comida, acompanhando a mãe às filas de beneficência alimentar. Fá-lo sem outro interesse que não seja o de ajudar. Mas o desespero dela e a falta de paciência dele com acabam por se impor de forma dramática… <p> «Eu, Daniel Blake» é o título do filme, mas é, principalmente, um manifesto, uma afirmação, um “statement”. Ele não é um ser impessoal, um número da segurança social, um empecilho na roda burocrática do Estado. Não! Ele é um ser humano, com um nome: Daniel Blake. E, enquanto tal, merece ser tratado com a educação a que isso obriga e com a decência que qualquer pessoa merece. É este o grito de Ken Loach pela voz e pelo corpo de Daniel Blake. É tempo do Estado parar na sua crescente automação, na sua incessante desumanização e olhar para as pessoas com a dignidade inerente a qualquer ser humano. O Estado não pode ver num trabalhador apenas uma fonte de rendimento fiscal e esquecer os princípios da equidade de tratamento e da solidariedade quando as posições se invertem e passe a ser este necessita do apoio do primeiro. Ken Loach é um homem de esquerda. Nunca o escondeu e sempre levantou bem alto o punho. Ao longo duma carreira com dezenas de títulos e incontáveis prémios, incluindo duas “Palmas de Ouro” em Cannes, a segunda precisamente com este “Eu Daniel Blake”, essa marca vermelha esteve sempre presente. Os argumentos dos seus filmes contam histórias de trabalhadores e de gente pobre, de pessoas a viveram em sujas “industrial towns”, exploradas pelos patrões ou pelo “sistema” e a que lhes falta voz e poder de protesto. Pode até não se concordar com estas ideias políticas, mas a verdade é que Loach sempre foi claro e coerente nas suas opções. Mas, muito para lá disso, é um extraordinário realizador. Com excepção de “O meu amigo Eric”, em que se lembrou de integrar o futebolista Eric Cantona no mundo do cinema, a verdade é que não me recordo de um filme seu menos bom. Despidos de artifícios e de superficialidades, tudo é essencial e tudo se alinha no sentido último do argumento e do seu propósito, o de fazer a denúncia de situações que ele considera serem injustas. Essa crueza, essa falta de polimento, perpassa nos personagens e, claro, nos cenários, contribuindo para que a sensação de revolta cresça no espectador. Arrisca, até, ser considerado manipulador e panfletário, mas fá-lo sempre muito bem. </p><p> Um brilhante exemplo desta sua capacidade de gerar histórias com múltiplas e subtis leituras acontece em “Eu, Daniel Blake”, em que temos um carpinteiro que ajuda uma mãe com filhos que não são dele, o que evoca imediatamente o simbolismo cristão. Esta “sagrada família” ocasional, necessita de muito do amor fraterno e da ajuda dos seus irmãos. Mas, dois mil anos depois, não encontra nada disso, apenas o materialismo do Estado, esse Herodes do tempo moderno. </p><p> Uma voz dissonante é sempre importante. Para nos acordar do conforto social onde por vezes adormecemos. Para nos alertar para o nosso egoísmo que nos leva a preocupar-nos apenas quando o problema nos toca. Para pensarmos duas vezes em que é que escolhemos para nos governar: se alguém que nos vê como fonte de receita fiscal ou como receptáculos do que há de mais sagrado: a dignidade individual. E Ken Loach faz isso como ninguém. </p>
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