Os caminhos do Senhor são misteriosos...
Pedro Brás Marques
Ainda ontem aqui falava de “Messiah”, a série de TV que ficciona a chegada, nos dias de hoje, de um novo Salvador. E recordava algumas abordagens que o cinema tem oferecido sobre a temática da religião e espiritualidade. Deixei propositadamente de fora “Corpus Christi”, o filme polaco que integrou o reduzido leque de candidatos ao Óscar de Melhor Filme Internacional. Daniel é um jovem delinquente que se encontra detido num estabelecimento correcional onde ajuda e canta na missa. O seu passado violento parece ser algo resolvido e ele até pretende ingressar num seminário. Mas o padre da instituição esclarece-o de que tal não é possível, por via do seu cadastro, e o que ele deveria fazer era dedicar-se ao trabalho que lhe tinha sido arranjado numa serração. Mas Daniel não quer nada disso e, enquanto vagueia por uma aldeia, acaba por assumir a função que tanto desejava: ser padre. A sua maneira de ser, a bondade dos seus actos e o poder da sua palavra fazem com que, rapidamente, conquiste o rebanho que estava meio tresmalhado por um padre que gostava mais dos seus vícios do que das probidades clericais… Mas o passado persegue-o. Há antigos colegas presidiários que o visitam e os seus escapes com música electrónica, dança e sexo também não o abandonam. Afinal, quem é que tem capacidade para verbalizar a palavra de Deus? Os que, aparentemente puros, a estudaram e têm como missão a sua divulgação ou os outros que, no meio das suas fraquezas, conseguem eficazmente fazer a obra do Senhor? É a batina que faz o padre ou é este que a tem de merecer? No fundo, o que é mais importante, o livro ou a capa? Daniel é uma personagem propositadamente ambígua. Nele coexiste a luz e a sombra, a virtude e o pecado. Ele percebe isso, o que o atormenta. Sabe o que é violência pura como conhece a felicidade existencial. Busca a redenção no meio dos homens mas não a consegue. As leis deles são mais fortes do que a sua vontade e, principalmente, do que o seu espírito. Não chega, sequer, ter conseguido realizar o “milagre” de sarar a ferida profunda aberta há muito naquela aldeia, algo que lhe granjearia a indulgência total de Deus mas, aos olhos dos homens, apenas lhes trouxe desconfiança se não mesmo traição. Daniel é interpretado por Bartosz Bielenia, um actor que, fisicamente, é perfeito para o papel. O seu ar de criança perdida, o corpo esquálido quase como se tivesse saído dum campo de concentração, um olhar profundo e enigmático em busca da piedade e da aceitação dos outros, tudo forma um quadro físico que contrasta, ainda mais, com a sua vontade de viver e, até, com a brutalidade e determinação com que enfrente os desafios. Um verdadeiro prodígio. E um enorme aplauso, também para Jan Komasa, que soube contar a história duma forma equilibrada, mostrando Daniel nas suas forças e fraquezas, o que faz com que as cenas de sexo e de violência sejam determinantes na composição da personagem e do próprio filme, e não momentos gratuitos, de cedência ao espectador, como acontece vezes demais do que as que seria ideal. Uma excelente surpresa que vem confirmar a qualidade da cinematografia polaca que nos tempos mais recentes nos presenteou com grandes filmes como “Guerra Fria” e “Ida” ambos de Pavel Pawlikowski e “O Baptismo” de Marcin Wrona, só para citar alguns exemplos.
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