Memorável
Pedro Vardasca
<p>As últimas semanas do ano são feitas de contabilidade. Por todo o lado, o afã de hierarquizar apodera-se da crítica, que sentencia, em profunda dissonância, quais os melhores. À sombra deste teclado, as preocupações com as listas não são tão prementes e talvez seja preferível reformular o problema, pensando no filme a escolher, entre todos que foi possível ver, se, por obrigação de alguma disposição legal desumana, só pudéssemos registar na memória uma única fita.<br />"Drive - Risco Duplo" é um filme norte-americano realizado por um dinamarquês, Nicolas Refn. Porventura, as ditas listas expressarão o que tem sido afirmado sobre o filme, cujas análises percorrem um longo arco, que se estende desde a sua visão como um devaneio retro focado nos anos 80 até ao reconhecimento rescaldado pelo sucesso de Cannes. Mas ainda que as opiniões não sejam irrelevantes, convirá não esquecer que o cinema é, antes de tudo, um prazer que se agarra ao corpo e, muitas vezes, teima em não sair.<br />Em Los Angeles, um condutor divide-se entre a mecânica automóvel, o papel de duplo em Hollywood e uns ganchos como motorista de assaltantes noturnos. Não tem nome e nada sabemos sobre ele. Fala pouco, meia dúzia de palavras espalhadas pelo tempo e parece-nos alheado de quase tudo, indiferente ao bulício que o cerca na grande urbe norte-americana. Estranhamente, o dinheiro parece não o interessar, uma anormalidade numa sociedade subjugada à sua divinização. Conduzir é a sua paixão e fá-lo com inegável cumplicidade com o isolamento do espaço à frente do volante. Para ele, a vida vai correndo solitariamente, sem causas ou motivos que sejam objeto de um especial desvelo.<br />Depois, a mudança. O condutor desperta para uma família vizinha, mãe e filho sozinhos, enquanto aguardam que o homem da casa regresse da prisão, retorno que conduzirá a ação a um caminho difícil de prever. Num ápice, o condutor revela-se uma personagem cujos atos poderiam muito bem habitar as páginas de um livro de James Ellroy, como se um passado maldito se atualizasse na defesa dos inocentes. A violência apodera-se do filme, mas sem a exposição gratuita de outro cinema, folclórico nas explosões de masculinidade. Aqui, o condutor luta pela sobrevivência dos que resolveu proteger e nada mais importa, pois os seus dias encontraram, finalmente, uma causa que valha a pena.<br />"Drive - Risco Duplo" é um filme que faz bom uso da matéria-prima que a história do cinema lhe legou, mas, na verdade, é também algo de profundamente novo e diferente de tudo o resto, talvez um cruzamento de um romantismo radical com as vicissitudes do destino que distinguem o film noir, especificando assim um sacrifício de raros contornos, com um homem violento acalentado da perspetiva de ter uma vida familiar, ainda que fugazmente, pois o seu amor condená-lo-á. Na verdade, o infortúnio do condutor decorre do seu próprio voluntarismo, sem lugar a outras justificações, sem mulheres fatais ou ambições desmesuradas de prosperidade material: é o mais puro dos afetos que o perde.<br />Num planeta reduzido ao egoísmo, "Drive - Risco Duplo" apresenta-nos uma nobreza que não é deste tempo. Um zombie anglo-saxónico é resgatado da morte por um breve encontro no espaço anódino de um elevador e a vida ganha, subitamente, novas cores. Mas a morte é expedita e não há forma de lhe escapar, como tão bem saberá este anti-herói, irremediavelmente condenado à tragédia. Mas será isto um sinal inequívoco de um final desesperançado?<br />Que dirá, então, a contabilidade terminal a partir da sua cátedra? Seguramente que o relegará, genericamente, para a prateleira das obras assombradas pelos chavões, filme pastiche, memorial aos anos 80, argumento simplista, desejo de relevância geracional (ou seja, puro engodo), cenário asséptico decorado por música pop sintética, entre o muito mais que se lembrarem, até porque a diversidade de pensamento continua a ser o caminho mais razoável para afastar o mau-olhado que assola o país.<br />Claro que nada disto importa. Conta apenas o prazer sentido na escuridão do espaço, a partilha irreproduzível com o que vai acontecendo na tela, o desejo de abandonar, ainda que por um instante, a vilania que habita o Mundo. Tudo equacionado, visto, revisto, somado e subtraído, "Drive - Risco Duplo" é a coisa mais sublime que o cinema fez aportar a Portugal nestes doze meses. Bom ano para todos!</p>
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