O Menor de dois Males – Tragédia Grega na Caverna de Platão
António Mercês
"127 Horas" trata-se de um filme sobre a experiência verídica e vivida na primeira pessoa de Aron Ralston, engenheiro mecânico de profissão e montanhista por prazer, representado no ecrã pelo actor James Franco.
Perante a evidência de perdermos a vida em virtude de uma contrariedade ocorrida durante a prática de um hobbie, o ser humano é confrontado com a sua existência/vida terrena até ao momento em que se vê perante a possibilidade de morrer. Qual afogado que lhe passa diante dos olhos, breves instantes antes de morrer, os episódios mais marcantes da sua existência, o protagonista vai-se recordando de forma cronológica e crescente aquilo que de mais marcante ocorreu na sua vida.
Nesta condição filosófica de prisão corpórea em que se encontra, o indivíduo tem a oportunidade para reflectir sobre o seu percurso de vida e, particularmente, a sua posição relativamente ao relacionamento com os outros, em particular, os que lhe são mais próximos e/ou queridos – desde os pais, pelos quais se recrimina por não ter convivido mais tempo com os mesmos, ou por não ter atendido mais vezes o telefone, ignorando deliberadamente as tentativas de contacto; a irmã mais nova, pela qual exprime o sentimento de que lhe falhou (ou faltou) aquando do casamento da mesma, ou até mesmo durante a convivência enquanto crianças; ou a namorada pela qual, pura e simplesmente, se desinteressou, acabando inevitável e naturalmente deixar a relação entre ambos degradar-se e extinguir-se.
É precisamente na fenda cavada naturalmente na rocha, onde por infelicidade acaba por caír ficando prisioneiro, que o indivíduo faz o necessário exercício de reconhecimento (anagnórise), ainda que delirante devido ao efeito da desidratação e inanição, das más acções que cometeu perante aqueles que verdadeiramente o amam (e que ele próprio, subentende-se, da mesma maneira corresponde ao sentimento), após ter cometido o acto de ter desafiado (hybris) a Natureza ao nela se ter aventurado sozinho, sem ter dado conhecimento prévio a alguém do que iria fazer, sofre intensamente (páthos) por esse mesmo acto irreflectido – a fome, a desidratação, a angústia perante a possibilidade de vir a morrer – são todas etapas deste estádio de sofrimento, vertiginosamente converge para a necessidade extrema de recorrer à amputação do próprio antebraço (clímax), visto daí depender a continuidade da sua existência terrena e a sua libertação da prisão em que inesperadamente se viu colocado. A acção da narrativa fílmica é em si igualmente contemplada pelo sentimento de piedade e misericórdia (eleos) que se apodera da audiência perante a situação em que o protagonista se encontra (sendo que, este mesmo indivíduo, representará igualmente, todo e qualquer um de nós, visto sermos passivos, e não imunes, a que algo de semelhante nos aconteça, o que permite a fácil identificação com o mesmo). A acção é do mesmo modo temperada pelo horror visual (phobos) nas cenas em que amputa artesanalmente o braço. Contudo, a noção clássica de catástrofe (no contexto da Tragédia Clássica Grega) não se traduz na morte ou degredo do indivíduo da sociedade onde vive e se insere. Muito pelo contrário, o período de provação e privação da liberdade confere-lhe a possibilidade de se redimir e de obter uma second chance relativamente à sua postura perante a vida e os outros. Agora que saiu da “caverna das sombras” (platonicamente falando) que tinha sido a sua existência até ao momento da contrariedade, pode agora finalmente ver claramente aquilo que tem sido (já não permanece na ignorância de si mesmo), estando agora munido de novos mecanismos que lhe irão possibilitar melhorar-se enquanto ser humano (a necessária catarse de todos estes sentimentos e sofrimento intensos, que lavará o indivíduo dos seus pecados perante si mesmo e os que o amam). Contudo, não o irá fazer sem que o destino (moira) o tenha deixado marcado para o resto da sua vida (através da amputação auto-imposta). Talvez para que se lembre de colocar sempre em prática os novos ensinamentos que esta autêntica “viagem iniciática” lhe proporcionou.
Inteligentemente bem filmado, sendo fiel a la lettre à estrutura da Tragédia Clássica Grega, o realizador Danny Boyle consegue um bom resultado final neste seu último trabalho. Verdadeiro testemunho de sobrevivência e perseverança (tal como o próprio Aron Ralston o foi, em virtude da necessidade e circunstâncias), transmite a mensagem de um trabalho sólido e soberbamente recomendável.
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