O ser pleno (contém spoilers)
Pedro Brás Marques
Quem é “ela”? Ela é Michele, uma mãe, uma filha, uma amante, uma profissional plena de confiança, mas com alguns problemas mal resolvidos. Um dia, dá-se um acontecimento que vai alterar todo o seu diálogo com o Mundo: é violada. <br /> <br />Ao contrário do que seria de esperar, Michele não procura socorro, não denuncia à polícia a violência de que foi alvo e só mais tarde confessa, serenamente, a situação a alguns que lhe são mais próximos. A partir daquele momento fracturante, gera-se um jogo em que os opostos lutam dentro de Michele. A situação repugna-a, mas também a atrai. Ela sentiu ódio, mas também prazer. No fundo, aquela dualidade já existia, mas estava anestesiada. Porque, na verdade, é com esta dualidade que ela tem vivido, entre a brutalidade e a manipulação, entre o hedonismo e a culpa. Gosta da mãe mas humilha-a por via do gigolo a quem esta paga. Tem uma relação amorosa com o marido da sua melhor amiga. Adora o filho mas mostra desprezo pela futura nora. Dirige uma empresa criadora de jogos de vídeo para adolescentes, mas todos eles plenos de violência. Engraça-se com a jovem, bela e loira vizinha, mas o seu objectivo é flirtar descaradamente com o marido. A fonte de toda esta perversão virá, porventura, do pai, um católico ultra-ortodoxo que, um dia, resolve matar 27 pessoas no bairro onde viviam. Tudo vai rolando até ao momento em que Michele descobre quem foi o violador, na altura em que este volta a atacá-la. A partir dali, tudo se modifica em Michele, libertando-a desta prisão a preto e branco, levando-a assumir as cores, a enfrentar a verdade, atingindo a plenitude e harmonia com o Mundo, tornando-se final e verdadeiramente em “ela”. <br /> <br />O filme funciona porque houve aqui um encontro especial, entre uma actriz e um realizador que se refastelaram toda a sua vida criativa da fonte da psicopatia. De um lado, Isabelle Huppert, uma actriz que não se coíbe de se expor desta forma impúdica e louca. Não é preciso citar muitos dos seus filmes. Recordaria dois: “Ma Mére”, de Christophe Honoré, com a sua composição duma mãe envolvida numa vertiginosa relação incestuosa com o filho, e o extraordinário “A Pianista”, de Michael Haneke, onde ela dá vida a uma personagem subtilmente diabólica, capaz de magoar os outros e a ela própria. Não deve haver muitas actrizes a aceitarem este tipo de personagens e ainda bem, porque é mais uma oportunidade para apreciarmos aquela que é, provavelmente, a melhor actriz da actualidade. Fosse ela americana e já tinha mais Óscares do que Meryl Streep… E depois há Paul Verhoeven, muito para lá da aventura hollywoodesca de há duas décadas, onde a sua estética não foi muito bem digerida, apesar de grandes sucessos nos anos 90 do século passado, como “Instinto Fatal”, “Desafio Total” e “Starship Troopers” e de curiosos objectos quase lendários como “Showgirls”… Mas a sua imagem de marca já vinha de trás, um cruzamento muito pessoal de violência e sexo, muitas vezes à beira do gore e da pornografia. Por isso, por este prazer pelo perverso e pelo limite que o caracterizam, tornaram perfeita a sua escolha para dirigir “Elle”. <br /> <br />E é precisamente esta feliz conjugação da “actriz ideal” para interpretar Michele, do “realizador ideal” para filmar o livro “Oh” de Philippe Djian que tornam “Elle” uma obra singularmente homogénea e um dos grandes filmes de 2016. Uma obra rica em significados e simbolismos, como aquele gato negro que assiste, impávido, à cena de violação. Não foi à toa que Inocêncio VIII, no século XV, os incluiu como seres a serem perseguidos pela Santa Inquisição…
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