Calvários
Pedro Brás Marques
Como é que a extraordinária e verídica história de Desmond Doss demorou quase setenta anos a chegar ao cinema é algo que deixa qualquer cinéfilo perplexo! Porque é daqueles argumentos em que há um pouco de tudo: romance, humor, carisma e alma, muita alma. <br />Doss é um jovem da Virgínia rural que se alista no exército porque ficou chocado com o ataque nipónico a Pearl Harbour. Até aqui nada de novo, não se desse o caso de ele ser um convicto crente da Igreja Adventista e por ter usado uma arma para ameaçar o pai que estava a agredir a mãe, jurou nunca mais pegar numa. É, portanto, um objector de consciência. Haverá espaço num exército para alguém com tão enraizado sentimento anti-bélico? Há verdade é que há e Doss vai assumir o papel de enfermeiro no campo de batalha. Ou seja, vai estar na linha de fogo, mas sem qualquer arma. Este aparente paradoxo só é explicável porque Doss acredita mesmo que tem um papel a desempenhar e o seu destino foi traçado por Deus. <br /><br />Aliás, todo o filme tem ressonâncias religiosas, como o calvário que o jovem cadete atravessou para ser reconhecido pelos seus superiores e, até, por alguns dos seus pares. Aguentou todas as violências, todas as sevícias, todos os insultos, para sair do outro lado imaculadamente limpo! Doss é o epiteto de herói, mas dos heróis verdadeiros de carne e osso, alguém que, debaixo de fogo pesado e armado apenas com as suas convicções, consegue salvar dezenas de companheiros. Mas o filme vai mais longe. É um monumento ao patriotismo e aos valores que fundaram os EUA, como a lealdade e a fraternidade e que, infelizmente, estão desde Novembro a sofrerem profundos ataques nas mãos daqueles que não servem a América, antes se servem dela. <br /><br />Andrew Garfield, no seu segundo desempenho de uma personagem em duelo com a sua dimensão espiritual, depois do memorável “Padre Ferreira”, em “O Silêncio” de Martin Scorcese, está seguro e o seu olhar passa bem a bondade e a firmeza das suas convicções. Mas a verdade é que o grande aplauso terá de ir para Mel Gibson. Não me lembro, desde “O Resgate do Soldado Ryan”, de um filme que mostrasse a guerra em toda a sua crueza e brutalidade. Todo o horror físico e mental dos conflitos bélicos e suas consequências humanas está retratado pela mão daquele que alcançou a imortalidade cinéfila ao realizar e interpretar “Braveheart – O Desafio do Guerreiro” e com o qual venceu o Óscar de Melhor Realizador. Tal como Doss, mas noutra dimensão, também Mel Gibson atravessou um calvário nos últimos dez anos, regado por muito álcool e colorido por afirmações controversas, algumas delas anti-semitas, um verdadeiro suicídio numa Hollywood assente sobre dinheiro judeu. <br /><br /> “O Herói de Hacksaw Ridge” pode muito bem ser a sua redenção, pelo menos enquanto realizador. É certo que depois de vermos cenas paradigmáticas como a da recruta em “Full Metal Jacket”, de Stanley Kubrick, ou as de combate no citado filme de Spielberg, torna-se quase impossível fazer melhor. Mel Gibson foi inteligente ao não as querer mimetizar. Claro que tinha de as mostrar, mas não o fez como meras referências militares, antes como etapas na caminhada de Doss, como estações da sua via sacra. Afinal, temos um filho que se liberta do pai e vai salvar almas para o campo de batalha… Estamos perante o regresso dum realizador que nunca será extraordinário, mas que consegue obras dignas e com uma profundidade que escapa a muitos realizadores ditos de sucesso.
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