Quando a tradição já não é o que era...
Pedro Brás Marques
Há uns anos, um memorável anúncio televisivo anunciava as virtudes duma bebida alcoólica sentenciando que “a tradição já não é o que era!”. Mas, por vezes, ainda é e quando esse anacronismo choca com os valores contemporâneos, o resultado é imprevisível. <br /> <br />“Mustang” passa-se numa aldeia remota da Turquia, situada próxima das margens do Mar Negro. Uma comunidade tradicional, completamente patriarcal e ainda mergulhada em costumes ancestrais, como casamentos arranjados e mulheres vestidas com túnicas “cor de merda”, como refere Lale, a mais nova das cinco órfãs adolescentes que vivem com a avó e com o tio. E é aqui que começam os problemas, pois elas estão naturalmente maravilhadas com as cores da adolescência, enquanto a família continua perfeitamente presa às tradições locais. Mas, um dia, elas resolvem ir até à praia com um grupo de rapazes, colegas da escola, e brincam uns com os outros, todos vestidos e sem qualquer contacto de foro íntimo. A avó sabe, dá-lhes uma tareia e proíbe-as de saírem de casa até casarem. A partir daí a história de cada uma das irmãs evolui em sentidos completamente diferentes, entre o feliz e o trágico. <br /> <br />A insatisfação com aquele mundo e a vontade de transgredir e de se afirmarem é bem vincada logo no início, quer no episódio da praia, como logo a seguir quando se divertem a roubar fruta a um vizinho, quando fogem de casa para ia ao futebol e aparecem na televisão (e a família corta a electricidade à aldeia para evitar “a vergonha”…) ou, ainda, quando se opõe às decisões familiares. É a luta entre duas mundividências distintas, uma presa ao passado e, a outra, virada para o futuro. Toda a história é focalizada na mais nova, a rebelde, destemida e teimosa Lale, a “Mustag” do título que tenta salvar-se não só a si como às irmãs. <br /> <br />A realizadora franco-turca Deniz Gamze Ergüven, que refere haver muito de auto-biográfico no filme, tem a virtude de contar esta história sem recorrer a moralismos ou a condenações precipitadas. As duas realidades aqui em choque existem e há gente boa e intencionada dos dois lados. O problema é que o mundo gira e nem todos têm a coragem de girar com ele e o resultado desta fricção pode ser dramático, como por vezes acontece e como aqui se verifica. Porque a natureza de cada uma das irmãs é distinta. Se uma é rebelde, outra é conformada e outra traça o seu destino. <br /> <br />Momentos houve em que foi impossível não recordar o filme inicial de Sofia Coppola, “As Virgens Suicidas”, na perspectiva de, em ambos, termos várias adolescentes a gerirem o seu tempo e o seu comportamento em grupo. Este “Mustang” é mais pragmático, não tem a “inexplicabilidade” das miúdas do filme americano, mas não é por isso que deixa de ser perturbador. Porque aquilo passa-se agora. E à semelhança destas irmãs, haverá milhares de outras cujas ambições de vida são castradas na adolescência, por via de costumes completamente anacrónicos. A maior parte deixa-se domesticar até porque, dada a sua condição de submissão, poucas têm a energia dum indomável “Mustang”.
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