Ensaio sobre a Liberdade
egas branco
<p>O filme trata de uma representação da famosa peça "Júlio César", de William Shakesperare, num universo concentracionário, o de uma prisão romana de alta segurança, Rebibbia, em que os actores foram seleccionados entre os presos e grande parte das cenas são realidade, isto é, pertencem aos ensaios e à representação da peça, dentro da prisão, para um público que ali foi autorizado a assistir. <br />A obra parte de um paradoxo: a luta pela liberdade contra a tirania é representada integralmente neste filme por homens que dela foram privados, mas por terem cometido crimes de grande gravidade, que os levam a cumprir elevadas penas que, nalguns casos, vão até à prisão perpétua. É óbvio que, no entanto, sentem como qualquer outro ser humano o pode sentir, nas condições mais diversas, a falta de liberdade. <br />Neste universo desumano, os homens perdem muito da sua dignidade, amputados além da liberdade, do amor, das suas mulheres, cuja presença no filme se sente embora quase invisível.<br />Entre muitos outros méritos, cinematográficos também, esta obra extraordinária dos Irmãos Taviani, faz-nos pensar desde logo na relatividade da liberdade, nos seus limites, no limite supremo que, em minha opinião, reside na necessidade de defesa da classe trabalhadora, exército de explorados e oprimidos, que uma vez libertos e chegados ao poder, através de grandes lutas e sacrifícios, dada a enorme diferença de meios entre exploradores e explorados, se vê obrigada a limitar a liberdade dos antigos senhores, sob pena de sabotagens e atentados que deitariam tudo a perder. E isso, obviamente, também é uma ditadura, para estes.<br />Um outro aspecto fundamental que a obra foca é o de homens duros e violentos, capazes de matar e serem associais (acusados de assassinatos, de tráfico de droga, de associação criminosa - Mafia e outras organizações, etc) terem aceite participar neste projecto e nele se empenhando com grande inteligência e sensibilidade. Recuperando a dignidade como seres humanos.<br />Por isso a representação da obra-prima da dramaturgia universal que é "Júlio César", é nesta encenação por vezes emocionante, comovente mesmo. É a dignidade de seres humanos, que no seu passado foram capazes de comportamentos irresponsáveis, que ressurge perante os nossos olhos. <br />Lembrei-me de uma das mais belas obras do revolucionário, político, homem das Artes, que foi Álvaro Cunhal, em "A Estrela de Seis Pontas", em que o escritor narra, através de várias estórias, a sua experiência de contacto durante o seu cativeiro nos cárceres fascistas por motivos políticos, com presos de delito comum, dando-nos admiráveis retratos desses homens vivendo em condições adversas, em geral muito por culpa própria, mas em que as fraquezas e grandezas do ser humano não deixam de coexistir.<br />Tudo isto a obra dos Irmãos Taviani mostra através de imagens que nos impressionam, com uma magnífica utilização da cor e do preto e branco. A cor, no início e fim da obra, nas imagens filmadas da representação, nomeadamente da batalha final da peça. O preto e branco, na vida na prisão, nos ensaios que às vezes se misturam com o quotidiano da vida prisional. Não há efeitos fáceis, não há imagens desnecessárias, neste fascinante relato.<br />Inesquecível entre outras é a cena em que os prisioneiros de Rebibbia, através das grades das suas celas, representam o povo de Roma que recebe César, acompanhado dos seus próximos, que são os actores seleccionados entre a população prisional. Extraordinário a interpretação de Cassius, por um dos detidos, Cosimo Rega. Tão brilhante que só no final, no genérico, nos convencemos que se trata de um amador, de um homem detido em Rebibbia. <br />Para mim, esta obra é uma das mais brilhantes incursões no cinema do universo shakesperiano. E também o filme de que mais gostei entre os vistos até ao momento nesta temporada cinematográfica.</p>
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