O expoente máximo da sua excelência
Pedro Silva
The Girl With the Dragon Tattoo condensa tudo o que David Fincher fez até agora e mostra que, apesar de já existir uma excelente adaptação, conseguiu improvisar tornando este filme diferente e para uma melhor experiência cumpri a minha parte, li o livro, vendo de seguida a adaptação sueca.<br />Antes mesmo de começar, somos surpreendidos pela abertura que não deixa ninguém indiferente, talvez sem palavras e com uma cara de espanto de difícil explicação. Um dos mais brilhantes músicos da actualidade, Trent Reznor, pegou na “The Immigrant Song” dos Led Zeppelin, e com Karen O criou algo diferente. Uma abertura altamente estilizada e poderosa dando a entender o que viria aí, muito ao estilo de David Fincher. Talvez uma das melhores aberturas que se assistiu nos últimos tempos.<br />Desde o inicio podemos perceber que este é o mais obscuro e gráfico filme de David Fincher indo beber a toda a sua experiência incluindo a importância do diálogo, que já acontecia em Zodiac, mas ainda mais cativante. A imagem de marca de Fincher envolve toda a sala de cinema, que parece ainda mais escura do realmente é, à excepção de quando iluminada pela brilhante cinematografia da captura das paisagens nórdicas cobertas de neve.<br />Numa análise simplista a história prende-se com a descoberta e o desvendar dos mistérios do desaparecimento de uma rapariga por um jornalista interpretado por Daniel Craig. O jornalista Mikael Blomkvist é contratado para com a suposta desculpa de estar a escrever umas memórias sobre Henrik Vanger, interpretado por Christopher Plummer, investigar a família de Henrik e tentar desvendar o misterioso desaparecimento de Harriet. Com a ajuda de uma perigosa mas brilhante investigadora punk, Lisbeth Salander interpretada por Rooney Mara, mergulham num segredo perturbador e escuro de uma família ligada ao nazismo e à corrupção. O objectivo será o de demonstrar a violência dos homens para com as mulheres, sendo esta violência retratada várias vezes, mas muito mais a história trata.<br />Mais do que a história, o filme vive das suas personagens e na brutal qualidade de que os actores foram capazes de entregar à recriação das mesmas, seguindo a essência do livro.<br />Daniel Craig consegue aqui a sua melhor interpretação, provando que nele existe mais do que a personagem 007, mostrando um bem elaborado Mikael Blomkvist explorando o seu lado fraco e submisso mantendo sempre o charme característico das suas personagens.<br />Stellan Skarsgård desempenha com engenho o seu papel levando o espectador a deparar-se com a sua demência mesmo no final, surpreendendo. Christopher Plummer cumpre com o que nos tem habituado e destaque para Yorick van Wageningen que interpreta o sadico Nils Bjurman, para além da compreensão.<br />O grande e monumental aplauso, com todas as honras vai para Rooney Mara que interpreta uma personagem nunca antes vista em cinema, de uma forma devota que levaria muitas actrizes a recusar o papel. Para a interpretação de Lisbeth Salander, pegou na personagem do livro e transformou-se nela, alterou radicalmente a sua imagem e corporizou todos os sentimentos desta pessoa altamente violentada e vitimizada mas que se recusa a ser vista como tal. Lisbeth é a alma do filme, uma personagem das mais interessantes até hoje mas com uma difícil interpretação. Mara comanda todas as cenas numa mistura entre uma raiva efervescente contida e uma vulnerabilidade extrema e através dos seus olhos somos levados numa viagem entre as mais diversas emoções. Não menos importante foi a capacidade de aparecer completamente nua quando a cena o pedia mostrando uma incrível dedicação e realização da sua capacidade como actriz. A personagem precisava de alguém que fosse capaz de compreender as suas emoções ao mesmo tempo que lidava com um grande espectro de sentimentos. Como referi, Mara transformou-se na Lisbeth, e qualquer olhar transporta o peso e a excelência com que foi conseguido, sendo que por momentos podemos até questionar se não estaremos mesmo a olhar para a alma desta personagem, indo mais longe ao estar completamente nua nas cenas de violência sexual.<br />David Fincher criou cenas que não apelam a toda a plateia, sendo graficamente violentas materializando-se principalmente nas sequências entre Lisbeth e Bjurman, o seu tutor do estado, quando esta lhe pedia dinheiro. Não estamos à espera do que aí vem e quando nos apercebemos, Fincher mostrar tudo no seu máximo horror sem nunca cortar ou divagar, mostrando-se sensato levando as pessoas a agarrarem-se às suas cadeiras. O público tem que se consciencializar que este tipo e violência não existe apenas nos filmes, apesar do gáudio que sentimos quando Lisbeth consegue a sua “pequena” vingança, quase nenhuma a alcança.<br />Poderia fazer uma crítica só da personagem porque fiquei fascinado, deslumbrado, delirante, com a sua actuação e apesar de ser uma personagem estranha, Lisbeth é um génio naquilo que faz e existe sempre uma razão para as suas atitudes, toda e qualquer uma. A sua relação com Mikael é mais profunda de que no filme sueco e mostra o quão frágil Lisbeth se torna perante o jornalista que aceitou em ajudar. Mas o mistério da história torna-se cada vez mais envolvente enquanto se vai juntando as peças das suas investigações e percebemos com que tipo de família estamos a lidar, que tipo de pessoas realmente se escondem por de trás das aparências que Mikael e Lisbeth investigam.<br />Outro ponto de destaque vai para a brilhante e estrondosa banda sonora, de Trent Reznor e Atticus Ross. Neste filme conseguem explorar caminhos que não lhes foi possível no “Social Network”, levando o espectador a um estado de suspense constante em que qualquer coisa pode acontecer esperando apenas o momento certo para nos surpreender e espantar. Diria até que a banda sonora melhora as cenas, nunca se sobrepondo às mesmas.<br />A nível de fotografia, David Fincher supera todos os seus anteriores filmes, recriando a ambiência escura que a história transmite e a beleza da neve branca que pinta a paisagem sueca. Dos seus filmes anteriores podemos retirar a escuridão em que o filme se envolve tal como em 7even e Zodiac, parecendo que as nuvens nunca limpam o céu e um cinzento pinta a tela, envolvendo o filme num estranho e desconfortável cenário em que a acção se desenrola. É isso que cativa nos filmes de Fincher, esse ambiente misterioso e sombrio com que as personagens se relacionam e evoluem.<br />The Girl With the Dragon Tattoo é movido pelas personagens, e obviamente nenhuma supera Lisbeth, mas é um filme duro, obscuro e tenebroso que não agradará a toda a gente, mas muito superior a vários nomeados para a estatueta de ouro. Indo buscar a escuridão de 7even e Fight Club, o suspense de O Jogo e a qualidade do diálogo de Zodiac, estamos perante o êxtase da obra de Fincher, o seu melhor filme, a sua obra prima, a sua mona lisa em tons escuros. Brinca com os sentimentos do espectador como nunca antes tinha feito, levando a estados totalmente opostos de alegria, tristeza, raiva, medo, suspense. Para quem leu o livro vai achar que o filme é tudo o que desejou e mais, e que Rooney Mara é uma estrela em ascensão tendo aqui a melhor actuação do ano merecendo o Óscar de melhor actriz, visto os iluminados que se sentam nos seus tronos de ouro e analisam com base em interesses e falsas moralidades deixaram o melhor filme e obra prima de David Fincher de fora. Peço desculpa pela extensão da critica mas muito havia a dizer e acabo: "Conseguiste mais uma vez Fincher!"<br /><br />Critica originalmente publicada no blog Retroprojecção
Continuar a ler