A 11ª Praga
Pedro Vardasca
<br />A memória regista com notável nitidez a derradeira imagem de “O Homem que Veio do Futuro” (Franklin Schaffner, 1968), a Estátua da Liberdade desapossada da sua majestade, ruína a confirmar a destruição dos valores e dos princípios inspiradores da experiência democrática, conceito irreconhecível num planeta dominado por símios. Percebe-se bem a escolha do ícone para simbolizar um modelo de sociedade, idealmente retratada como franqueada ao Velho Mundo, aberta às massas que demandavam uma nova esperança num país de largos horizontes, com porta de entrada na cidade que melhor ilustra o mosaico étnico dos Estados Unidos da América. Mas se o velho filme com Charlton Heston acabava à beira da Ilha da Liberdade, o início da queda localiza-se no outro extremo, em São Francisco, cidade da industriosa Califórnia. <br /><br />A preferência não se funda no potencial decorativo da paisagem urbana – ainda que a Golden Gate seja uma vantagem para o orgulho cívico dos são franciscanos –, mas antes na proeminência tecnológica do estado do Pacífico, pois “O Planeta dos Macacos – A Origem” centra-se na vertigem tecnológica que a ganância, aqui maquilhada das intenções científicas dos conglomerados farmacêuticos, instila numa nação que se gosta de apresentar como modelo para o resto do mundo. Por isso, o filme não se reduz à mera dimensão lúdica, sempre útil na languidez do estio, interrogando-nos, em primeiro lugar, sobre o papel da ciência na contemporaneidade. <br /><br />Especialmente emergente é a questão ecológica, com os problemas que decorrem da necessidade de encontrar um justo equilíbrio no seio da diversidade que habita a Terra. Depois, retemos a dimensão ética, aqui enfatizada pela luta contra uma doença de grande impacto nas envelhecidas sociedades ocidentais, o Alzheimer, que no filme é o elemento catalisador dos acontecimentos que conduzem a humanidade à fronteira do abismo. Na trama da narrativa, a experimentação de novas terapêuticas faz, mais uma vez, regressar a Hollywood o tema do descontrolo do objecto face ao seu criador, com consequências de difícil previsibilidade. <br /><br />No entanto, quando desviamos o olhar do imediatamente reconhecível, “O Planeta dos Macacos – A Origem” torna-se em algo diferente, com espaço suficiente para a reflexão sobre a obtenção e a conservação do Poder, embora a afirmação não pretenda fazer do filme uma obra com propósitos filosóficos ou de teoria política sobre cenário de ficção científica. Mas, na verdade, a referência a Shakespeare não se resume a uma simples nota de rodapé e, com um simbolismo não desprezível, o chimpanzé é baptizado de César, influência do drama “Júlio César”. Quando encerrado no cárcere, César emprega a inteligência que a genética lhe legou e, já claramente dotado de traços da personalidade humana, manipula os seus semelhantes, ascendendo à liderança do grupo. Esta elevação não dispensa os pormenores da hierarquia dos homens, com os validos que constituem o embrião de uma aristocracia, que tem à cabeça o mais arguto e não o mais forte, como comummente sucede no reino animal. Quando preparada, a horda símia inicia o processo de libertação, temperado pela elaboração intelectual de César, que não é um caudilho de facção comandado pelo instinto, mas um líder capaz de engendrar o seu próprio destino.<br /><br />É neste momento que o cinema hollywoodesco explode, com a subversão a alastrar pela cidade numa cavalgada primata de ressonâncias bíblicas, como mais uma praga a acrescentar a todas as outras, maldição que, desta vez, não se circunscreve à teimosia de um déspota, mas irrompe para punir os desmandos de toda a humanidade. A paisagem de São Francisco transforma-se em puro cenário cinematográfico, com apoteose no recontro entre homens e macacos na Golden Gate, aquilo que separa o espaço urbano da selva possível num continente estranho. Os indispensáveis efeitos especiais transformam o ferro e o aço da ponte num improvável campo de batalha em que a tecnologia humana é batida pelo empenho simiesco, que conhece então os primeiros mártires, facto indispensável à construção de mitos fundadores. Depois da refrega, a angústia de César chega ao fim e o chimpanzé escolhe a companhia dos seus, afastando-se da sociedade humana, através da qual tinha atingido um elevado grau de sofisticação intelectual.<br /><br />Entretimento acima da média para a época, “O Planeta dos Macacos – A Origem” manifesta ainda a virtude de resolver bem a ligação ao velho filme de 68, cotejando aquele com os detalhes que a memória conservou. Os breves apontamentos sobre o lançamento da missão espacial a Marte, a utilização do cavalo, futuro meio de locomoção dos novos rivais dos homens, ou, já no fim, a referência a uma pandemia global como causa essencial da decadência humana são exemplos felizes do engenho do cinema, árvore gigantesca com incontáveis ramificações, a cuja sombra nos recolhemos felizes. A ver, sem reservas.
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